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Mário Hélio 

Poussin, The Exposition of Moses

   

 

 

 


Primeiro grito: Heróide

 

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Albrecht Dürer, Head of an apostle looking upward

 

Ticiano, Salomé

 

 

 

 

 

 

 

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido

 

 

 

 

 

Mário Hélio


 

I (Cabeçalho)


ergo este tributo às nossas almas
por tudo o que nós fomos no que somos,
na simples humildade do que expomos
- a débil e frágil luz, a lira calma -
à larga vastidão do que é finito,
num grito maior do que a própria voz,
o grifo triunfal, o grito:
nós!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravaggio, Tentação de São Tomé, detalhe

 

 

 

 

 

Mário Hélio


 

II (Avis rara)


ser vontade de pássaro,
as asas adejar pelo infinito crocitante
e acenar aos mecenas de saturno
que eu também vôo!
mas é a fala que cala,
resvala no último ogro que há.
força mágica que assassina as estrelas,
riso de fogo que incendeia a alma,
no entanto feroz vejo-te calma,
e me olhas, eu te olho, e nos olhamos
num olhar patético e néscio até.
eu poderia dizer da tua voz doce e mansa
sáltria divina cavatina de delírio
sei porém que inadvertida
pela imagem da força da distância
irá impelida pelo amargor que envolve toda vida,
e tua boca que ora ri e me deleita
se abrirá como em rictus selvagem
sinto e pressinto
que ferirá minhalma
que busca a tua qual orfeu a amada
o teu olhar em negra claridade
ofuscando os sóis.

 

 

 

Michelangelo, Pietá

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Vera Queiroz

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), Girl, detail

 

 

 

 

 

Mário Hélio


 

III (Mensagem)


palavra,
eu te conheci em palavras,
eu te aprendi em palavras
eu te beijei em palavras
eu te amei por fim em palavras
num dia em que as palavras
substituem gestos e palavras.

 

 

 

Sophie Anderson, Portrait Of Young Girl

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Teresa Schiappa

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), A Classical Beauty

 

 

 

 

Mário Hélio


 

IV (Marte e Vênus)


doce amiga, apenas sou o aedo
que ignorando que as coisas eram incertas
e que a própria incerteza é mãe da vida,
te procurou como procura um asceta
sua verdade boiando além das mãos pendidas.
te possuí como se tem a um segredo
e depois de o sabermos sabemos não sabê-lo.

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Yeda

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Conceição Paranhos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Andreas Achenbach, Germany (1815 - 1910), A Fishing Boat

 

 

 

 

 

Mário Hélio


 

V (Cais sombrio)


eu te reparo nos olhos:
possuem um brilho intensamente mágico
e trágico
eu amo tua pele, cada traço,
cab:elos do mais fino fio
que desfio impulsivamente
tragicomicamente
em toda a extensão do teu ser
porque és maior do que a imaginação.

 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), Christ in the Sepulchre, Guarded by Angels

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Yêda Schmaltz

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravaggio, Êxtase de São Francisco

 

 

 

Mário Hélio


 

VI (Clariluz)


ontem à noite
eu vi teu espírito sobrevoar a cidade
e apagar silenciosamente
todas as luzes.

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata

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Dora Ferreira da Silva

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Venus with Organist and Cupid

 

 

 

 

 

Mário Hélio


 

VII (Confidência)


tua sombra persegue-me a todo instante,
visita-me no instante da demora.
não sabe que é sombra e breve o instante
e a eternidade é só uma demora.


mas tua sombra não descansa
e dança mansa e inquieta sobre mim,
mas avança tão sutil e tanto avança
que eu pressinto que voa sobre mim.


o meu protesto enfim é de esperar-te
por amar-te talvez? não sei se o amor
não é pura paixão de esperar-te
ou desespero de amar-te sem amor.


não sei talvez em que profundo abismo
lancei-me, enlacei-me, doido cego já sem asas,
mas o sonho de tê-las já é o abismo,
as tuas garras, águia, arrancaram-me as asas.

 

 

 

Octavio Paz, Nobel

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Gizelda Morais

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

 

 

 

 

 

Mário Hélio


 

VIII (Révora)


eu pensei que não seria o único
a penetrar sorrateiro em tua alcova
e beber o lume e a lama de tantos corpos.
nós estávamos um pouco tristes,
e nus sabíamos os últimos puros.
o suor saía dos teus poros,
e eu já para ti algum escudo
quando a luz da escuridão nos envolvia.
e tu volvias, amiga.
eu não sabia que vias poesia em tudo.


teu lábio, contudo, emudecia, umedecia-se de orvalho,
e nós estávamos mudos.
foi quando o anjo singular da fantasia
despiu-se mostrando-se todo.
e então em um ato sublime
também te deitaste em mim
como um jardim em espinhos.
tu não sabes que este não é o caminho?
não atinavas, estavas sozinha, e eu, sozinho,
brincando com a tua agonia.
eu não sabia que vias poesia em tudo.


mas o que esse tudo abrangia?
a mim? a nós? ou ao que me iludo
adaptando-me moldando-me à alegria
que existia sempre? sempre até quando?
e ser preciso morrer de vez em quando
e ser preciso precisar-te que preciso
e aguardo-te, e guardo teu riso no meu viso
que sem ter mais o que espelhar
vai-se espelhando narciso.
eu vi um vulto sem saber que via,
sem saber que vias poesia em tudo.


veneno doce que bebido mata
mas que embebido só numa canastra
arde e maltrata só.
mas que importa toda parafasia
ou monomania de dois nomes
se é substantivo poesia
e tudo é indefinido pronome?

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Antigona

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Maria Maia

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

 

 

 

 

 

Mário Hélio


 

IX (Odores)


pobres flores que fiam
filhas finitas
e se des pet alam
olhando o po m ar
e em enormes tristezas se calam
e resv alam as pét alas
suprindo a fome do oceano de ar.
flores selvagens que se desfloram
e se confragem frágeis imperfeitas
vestidas, sorvidas, vertidas,
em pouca vida e muita ilusão,
e não repousam nunca, não descansam
o cansaço de há séculos serem sempre vivas
esquivas, cativas, passivas,
e dançam em delírio, dançam
esquecendo que são flores -- fenescem
melhor do que enterarrarassementes
dispersá-las à tarde
despertálas é tarde
já se transformaram em cardos
na tarde longa e oblonga por trás dos rochedos.
eu não canto a saudade, desconheço o degredo.
o meu sonho é um segredo improfíquo que segrego.
podres odres das flores que nascem pra definhar,
pobres dos homens que vivem para sonhar.

 

 

 

Rembrandt, Aristotle with a bust of Homer

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Nelly Novaes Coelho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Maja Desnuda

 

 

 

 

 

Mário Hélio


 

X (Orfeurídice)


o corpo ardente.


tuas curvas tuas mãos
se perderam na vertigem
dos que quiseram dizer sim
ao amor que já não pulsa
à canção que já não vibra.
teu hálito perdeu-se
entre flores, calores e perfumes.
nós nos perdemos no caminho onde não há volta
porque não se pode olhar atrás.
atrás ficaram todos os carinhos.
atrás ficou a sede desmedida,
atrás ficaram todos os caminhos.

 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

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Dalila Teles Veras

 

 

11.05.2006