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Marta Gonçalves


 

Chuva na quilha


A chuva vem de longe, abriga
o fim do ano. No arroio,
       memórias memórias
trituradas nas tardes outonais.


Vem chuva na campina da alma.
Guardamos os anéis usados nos dias
do calendário. A água repõe salivas
e lembramos as flores idas na maré.


Esperamos os sóis que virão marcados
de cruzes. A madeira pesa o corpo
e levará o corpo. Somos sobreviventes
do oceano. Sua água chega na porta da casa
mesmo que se faça distante.


A chuva cinza os olhos.
O canto é anterior aos que sobrevivem.
Ainda que se conte o tempo.
Ainda que nas mãos o adeus.
Os mortos virão para o Ano Novo.
          Estão sentados à mesa,
                            vestem linho.


Descerão na aurora
         e quando o dia nascer
ficaremos só com a túnica
         e a tempestade na quilha.
E o vento o vento presságios
      nos olhos
trazendo cardumes. Trazendo a ferrugem
                  dos números.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Andreas Achenbach, Germany (1815 - 1910), A Fishing Boat

Marta Gonçalves


 

O coração se redime


Maurício chegou nas nuvens
andava entre velhos eucaliptos.
Trazia na pele a quentura do mês
de janeiro. Me olhava manso. O chapéu
longo escondia a cor dos olhos. Era
longa a viagem de Maurício. Suas
mãos buscavam o sol. Sempre o sol.


Na tarde morna Maurício desenhou
um leque, depois outro, dezenas.
Neste desenhar ficou longe a sombra
                  do rosto.


A ferida nas mãos fechou nas asas dos pássaros.
Os leques ficaram esquecidos. Uma ternura passava
na alma. A dor morreu na pele. Maurício andava no mundo
com um velho violino. Crescia meu corpo. Nas manhãs de chuva
o coração se redime. A lucidez volta nos olhos e vejo Maurício
                  nas nuvens.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Êxtase de São Francisco

 

Marta Gonçalves


 

Lições de vida


Nos lábios, secura de fome espera
o rio manso das palavras. Ando
soltando pássaros verdes e descubro
nos ninhos lições de vida. O galho
do salgueiro conversa com o vento.
No corpo, marcas de ferro. Nas cavernas,
lembranças embalsamadas.


         Tudo o que escrevo está em mim.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Venus with Organist and Cupid

 

Marta Gonçalves


 

Imagem


Vestida de branco, olho borboletas
voando flores vermelhas do jardim:
lagarta na folha do antúrio.
Há alguém na nuvem despertando o cansaço
das mãos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

 

Marta Gonçalves


 

Juízo final


Segurando em minhas mãos


olhos prisioneiros, mudarei


o mundo, antes de um anjo de palha


          anunciar o fim.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

Marta Gonçalves


 

Homens de lã


Todos os limites planaram
na linha do infinito. Descobrirei
o segredo das sementes, a calma
de suas raízes. O peixe, o barco
no mar. Anjos mergulhando sorrisos
no rosto. Terra orvalhada de chuva.
Montanhas vasando imagens do vento.
           Antes da queda do poeta,
carneiros não deixarão os homens
           roubar a lã.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Maja Desnuda

Marta Gonçalves


 

Cristaleira


Vamos abrir juntos a janela


escutar a conversa da cristaleira.


        Quero sorver o vinho mas me agarro


                  ao cristal.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Judgment of Solomon

Marta Gonçalves


 

Nuvens brancas


Cavalos vermelhos voam no espaço
nuvens brancas desenham carneiros
o perfume da terra espera o homem
o homem quer sementes adubadas
          plasmando o ar.


O poeta, de sandália azul, cobre a alma
         com penas de pássaros.

 

 

 

 

 

 

21.07.2005