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Rodrigo Petronio


 

Parmênides


Não dura a sombra dos homens contra a luz,
a palidez do dia e sua fatura
de signos que a essas frutas se reduz,
a consciência dos mortos não dura

o instante extinto e obliquo de um segundo.
Não duram as cinzas sobre a mesa fria,
a claridade mítica em que o mundo,
num lampejo, quase à sua revelia,

às mãos do místico se entrega intacto.
Não duro e não duras mais que o momento
em que o Ser à míngua se inscreve em ato

forjando em seu espelho o movimento,
o percurso que vai da Idéia ao fato,
entregue a flor ao Vento que há no vento.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Exposition of Moses

 

 

 

 

 

Rodrigo Petronio


 

São João da Cruz


Essa sede milagrosa
que ora nos coroou de espinhos
hoje chora seus mortos embebida e perfilada
num corredor simétrico de rosas
que deve ser o espelho de outra vida
não além
mas fora da órbita em que a mão gravita e apalpa
corpos diáfanos na noite líquida.

Foi o tempo.
E com ele o cântico das criaturas,
nota após nota, persiste, perscruta e entoa
o mundo que transborda das mãos do Artífice
e do domínio de suas chagas e seus dias:
o canto é de quem canta,
de quem o pensa com a garganta,
não de quem o fia às cinzas da página e suas ciladas.
Assim o poema brota
dessa fonte que é infinita,
translúcido e incansável como o vento nos tatua
e como o sol nos abençoa.

Não há mais guerra interior
suas engrenagens.
Há apenas a oferenda singela
do poema que ignora nossa miséria e a nossa espada.
O canto é de quem canta e não tem dono.
Nasce irresponsável como a água
que insiste em lapidar a pedra-pomo
e através dos séculos esculpir a tua cara.

 

 

 

Hélio Rola

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Antônio Massa

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Venus Presenting  Arms to Aeneas

 

 

 

 

 

Rodrigo Petronio


 

Li tai po


Um dia alguém vai ouvir
essa brisa que ouço agora:

verga os galhos do plátano
leva das mãos esta folha.

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Yeda

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Virgílio Maia

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

Rodrigo Petronio


 

Cidade


De ferro
tem que ser a noite que pesa sobre os prédios
e cristaliza seus cacos de enxofre sobre folhas de janelas.

O ônibus recolhe miniaturas
à beira da pista com sua pá em uma carícia simétrica
e penetra o mistério como que passa por uma porta.
Viajando dentro do sono e seus cilindros,
rostos que solapam e riscam com seu riso a urdidura das trevas,
remamos numa corrente de água veloz
e invisível que leva nossos cabelos
e nos chama com sua voz mineral e antiga,
a mesma que deu o enigma e previu a morte de Édipo.

Não há porque mitigar a sede do vencido.
Não há porque reparar o movimento de ombros
com que uma mulher suspende o filho
sobre a torrente da aurora que transborda sem estilo.

Cavalos e moinho alados
freqüentam os espaços intangíveis dessa noite
e seus fragmentos remotos selados dentro de um cofre.
Sombra e miragem de corpos
se apagam sob o rio comum da memória e seu inflexível cobre.

Em suas artérias,
indo e vindo em rotação lentas,
queimei a pólvora do tempo mais preciso.

Você
que borrou seu nome em um cartório
que habitou o balão do dia
quando ele nascia em sua hemorragia de luz
flutuando em sua rotina miserável que se inflama e cresce
que desfez pactos e amenizou a dor
com conversas anônimas dentro de um quarto,
que correu seu sangue entre as patas imundas do inimigo
e acompanhou atento a procissão dos fantasmas em um jornal diário.
Saiba: estamos unidos numa comunhão diáfana.
Nunca trocamos uma só palavra.
Mas somos irmãos nesse eterno olvido.

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), João Batista

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Andréa Santos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Judgment of Solomon

 

 

 

 

 

Rodrigo Petronio


 

Urna


Estrelas pascem a solidão noturna,
lusco-fusco de cinza sob prata
que ora é clarão que o fundo negro mata,
ora insetos entregues a uma urna.

Ser e não ser conjugam-se no mito
dessa cúpula vazia, erma gruta,
que traz nos seus dentes a antiga luta
da matéria que de minha alma omito.

Estalactites de gelo etéreo e mudo,
e a luz inteligível encena a Peça:
contas de ar e cristal sobre um veludo

escuro que o destino humano traça:
não há no mundo quem traduzindo meça
o quê de eterno que há no ser que passa.

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), L'Innocence

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Domi Chirongo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tintoretto, Criação dos animais

 

 

 

 

 

Rodrigo Petronio


 

Nadja


Em tua pele
se decalca uma luz
que não aquece.

Em tua pele
se conjuram brancos
de outro cariz
brancos
de outro branco
em leque.

Em tua pele
se deflagra um óbito
de sol

branco fosco
contra o qual
não há quem
impreque.

Em tua pele
se despetala
e se descama
outra ramagem
mais agreste
que esses
campos de areia
estéreis.

Em tua pele
se tatua e se descreve
um arco de seda leve

que de tua pele
te despe.

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana

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Sebastião Uchoa Leite

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Maja Desnuda

 

 

 

 

 

Rodrigo Petronio


 

Fábula milenar e de costumes


o rei sofre
Uruk dorme

o rei reflete
Uruk dorme

o rei repousa
Uruk dorme

 

 

 

Valdir Rocha, Fui eu

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Renato Suttana

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Antonia Zarate, detalhe

 

 

 

 

 

Rodrigo Petronio


 

Vico


Do fluxo ao refluxo a História anuncia
em seu curso o sentido último de Deus
e recria todo futuro com seus
muitos rumos refeitos em alquimia.

A realidade traz em si – sinuosa
faca – a própria natureza e aquilo
que a transcende: da lâmina perfilo
a luz, e da luz intuo um sol. Cosa

Mentale? Simples predicado do real?
Hesito; sei que a verdade vive além
do mundo manifesto e aquém do mito.

Do olho tríplice de Deus um cristal
de luz derrama-se e a História vem
a ser a interseção de fato e infinito.

 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), Christ in the Sepulchre, Guarded by Angels

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Paulo de Tarso Pardal

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

 

 

 

 

 

Rodrigo Petronio


 

Dança


É inútil querer que a alma seja una.
Simulacro que aos olhos se desata
e na matéria cálida ressuma
alheia à vida e, no que morre, intacta.

Tela branca que o tempo mimetiza
em sua fluência líquida e serena,
inscrição frugal que a ave faz na brisa,
signo ancestral que aos mortais acena

do interior do âmbar resoluto,
giro dos seres que o sensível esmalta
à sombra do que fora Absoluto:

irmã do Ser Imóvel do Eleata,
dança a alma quando vive do que falta
e morre em quanto aspira ser exata.

 

 

 

Da Vinci, Homem vitruviano

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Maria da Conceição Paranhos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba

 

 

 

 

 

Rodrigo Petronio


 

Epílogo


Diversa de outras
searas, o que colho
agora é contentamento.
Simples, sem regalo.

Bater do vento
na cara.

Com o olho claro,
cumprir o intento:
guardar estátuas
em movimento.

 

 

 

José Saramago, Nobel

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Gizelda Morais