Francisco Carvalho
Um poeta alça vôo
Francisco Carvalho
(da
Academia Cearense de Letras)
Hoje já
ninguém leva mais a sério os vaticínios dos profetas da morte da
poesia. Nunca tantos poemas foram escritos quanto nos três últimos
quartéis do século passado até o começo da nova centúria. Trata-se
de um fato que estaria a merecer estudo dos cientistas sociais. Por
que a opção pela poesia, quando a prosa, indiscutivelmente mais
plástica para a expressão de idéias e sentimentos, se presta
admiravelmente para veicular estados poéticos sem as conhecidas
limitações da isometria formal e até mesmo do chamado verso livre?
Que não é tão livre quanto se imagina, conforme adverte T.S. Eliot,
para quem “não existe verso livre quando se pretende fazer um bom
trabalho”.
Acabo
de ler os originais do livro de poemas
Arestas,
de autoria de Wender Montenegro, que faz sua estréia nos domínios da
seara poética. No poema que abre o livro, o poeta se pergunta qual a
bandeira a desfraldar no seu percurso lírico. Depois de citar os
nomes de vários poetas do passado e dos movimentos estéticos a que
pertenceram, faz esta pergunta crucial: “A bandeira dos que não têm
bandeira”. A ambigüidade do verso final frustra de certo modo as
expectativas do leitor, que esperava uma definição explícita do
posicionamento ideológico do poeta.
Mas nem
tudo é perplexidade na produção inaugural do autor de
Arestas.
“Somente a paixão / guiava ¸caro / asas de ouro / não derretem ao
sol”. Em ALIANÇA, o poético é captado de forma direta na “sombra /
de águas / passadas / que ainda / movem / pupilas”. Note-se que o
poeta faz uso de recursos lúdicos para criar uma paródia em torno do
dito popular segundo o qual “águas passadas não movem moinhos”.
Exemplo típico de que a poesia pode estar à flor da pele das coisas.
Ou pode jorrar, de forma cristalina, das palavras mais simples do
idioma, despojadas de fumos de erudição ou de ornamentos retóricos.
O
lirismo não é uma forma de extravasar tentativas frustradas de amor.
Pode servir de instrumento para denunciar abusos e intromissões do
poder, contrários aos objetivos do sistema democrático, conforme se
apreende destes versos: “Ó Democracia! / Em mares hostis, /
ditadores vis, / com braços de polvo, / mataram teu povo / por
asfixia!”. Em SILOGISMO, o poeta nos fala de cisnes e logo nos vem à
memória o soneto famoso de Julio Salusse, onde ele e a amada são
“como dois cisnes de alvacentas plumas”. Felizmente, os cisnes de WM
nadam em outra direção: “refletem elefantes / na tela de Dali”, que
sempre fez questão de ser heterodoxo, de não reverenciar a ordem
constituída, nos domínios do poder, da palavra e dos pincéis.
De
quando em vez, o poeta parece embrenhar-se por veredas românticas.
Talvez reminiscências de Álvares de Azevedo, de Castro Alves, de
outros poetas ligados à mesma vertente estética. “Sobre mim pesa um
túmulo sombrio. // Minha lápide / – boquiaberta – // Sinos festivos
tilintem, sombrios, / pois, das sombras / tecerei canções em dó...”.
Com certeza terá lido os principais românticos brasileiros, no que
procedeu muito bem, e assimilou certos matizes de melancolia
daqueles poetas que sucumbiram na primavera da vida. O problema
reside nesta frase de Mário de Andrade: “O passado é uma lição para
se meditar, não para reproduzir”. O poeta de São Paulo adorava
exibições narcisistas, que, felizmente, não lhe comprometeram a
lucidez.
FILÉ DE
ABUTRE, A MORTE USA ESTILINGUE, CANTO P(R)O(F)ÉTICO e vários outros
poemas da coletânea demonstram a qualidade da oficina poética de
Wender Montenegro, perceptível do ponto de vista da gramática
normativa e da gramática estética. Não se faz poesia excepcional,
com exceção dos gênios, cada vez mais raros, sem a estreita
convivência dos grandes mestres da literatura, não importando a sua
nacionalidade. É preciso visitá-los com alguma assiduidade, não para
copiá-los mas para aprender com eles a complexa ciência da palavra
exata, como pode alguém ser sábio sem ser pedante e, principalmente,
que o ser humano é mais importante do que a máquina mais sofisticada
do planeta, do que o mais avançado dos computadores de última
geração. Fabricados, diga-se de passagem, pelo engenho do mais
evoluído dos primatas.
Os
acertos e desacertos dos poetas estreantes não devem servir de
orgulho nem de frustração para ninguém. O poeta se constrói a partir
de cada verso, de cada estrofe, de cada poema. É esta a sua
alvenaria predileta, sedimentada com o cimento da palavra. O poema é
talvez o caminho mais longo para a descoberta do homem. De seus
píncaros ou de seus pântanos. De seus clarões ou de suas trevas. O
poema deve ser o olho clínico que investiga as feridas do corpo e da
alma. Até mesmo o poema hermético nos enxerga e sabe onde nos dói
com maior intensidade. Wender Montenegro não ignora que a vida é uma
caminhada entre curvas e arestas. Ao poeta cabe polir as arestas que
nos magoam. Do tempo, da vida, do sonho, do amor e até mesmo da
morte. |