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Joaquim Alves
CONTOS
&
CRÓNICAS
O
ANÚNCIO
Juro que não sei por que acontecem
estas coisas comigo.Vinha da Feira da Ladra, e alguém que
parecia conhecer-me diz-me de uma assentada: encontrámos o seu
cão!
Surpreendido, me acanhei. Mas eu
não tenho cão algum!, justifiquei. De nada me serviu. Que o cão
era meu, viram-no andar a rondar os meus passos e coisas
assim...
Gatos tenho. Siameses, com dois
interessantes nomes: Romeu & Julieta.
Fui apanhado. Vão dar-se bem,
siameses gostam de cães e qualquer cão gosta de siameses, etc.,
couves & tal. Pronto! Sem grande convicção, lá levei o bicho.
De caminho, comprei o Expresso, já
com aquela mariquice-de-amarelo-vermelho-azul. Abri um dos
volumes - o sexto, se não me engano, e lá vinha um anúncio a
reclamar o retorno de um cão de raça-e-tudo, mas impresso ao
contrário. Provavelmente, foi isso que me chamou a devida
atenção. Por uma mera distracção, o respectivo fotolito (sem
acento, sff) ficou invertido. Ou seja, assentou mal na esquerda
da página.
Acontece aos melhores, comentei
para dentro.
Bem, vai daí, peguei num espelho e
li tudo!
Telefonei, o Dono do Bicho veio
ter comigo, agradeceu, queria dar-me alvíssaras, recusei, tal
como evitei que me levasse os siameses.
À despedida, aconteceu o insólito. O Romeu rugiu.
Façam o favor de imaginar o resto.
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Milagre
Milagre
Milagre. Tem de haver um milagre no meio de tudo isto. Ou
muitos milagres. Pai, o que é um milagre, pergunta a lia. É
uma daquelas coisas que o menino Jesus do Pessoa roubou no
baú lá do céu, respondi. E tu acreditas no céu, voltou a lia
a
perguntar.
Não, sim, talvez! E no menino Jesus? Acredito no menino
Jesus do Pessoa, que roubou três milagres do baú, lá no céu
e se fez menino a sério e veio cá para baixo fazer
travessuras que no céu não podia fazer. Pai, quando fores
velhinho vais para o céu? Acho que vou. Mas se for para o
inferno, também não
deve
ser mau de todo. Penso que tenho amigos nos dois lados,
nãovai ser problema.O pior é cá em baixo. E acreditas no Pai
Natal, voltou a lia à luta. Mais do que muita gente pensa.
Gostavas de estar lá no pólo norte a ajudá-lo a preparar as
prendas para os meninos? Já lá estive e gostei. Muito mesmo.
Então, viste as renas! E também vi o trenó e os iglos de
neve e gelo. Mas, pai, lá dentro são fofinhos e quentes, não
são?! Claro, os esquimós sabem como essas coisas se fazem. E
eles ajudam o Pai Natal? São as pessoas mais indicadas, até
porque estão habituados ao frio lá da zona. Os esqumós têm
sempre o nariz vermelho, como o pai Natal, comentou a Lia.
Pois é, reforcei. Pai, queres jogar comigo ao peixinho?
Agora, não posso. Estou a escrever a nossa conversa. Então,
depois do
almoço.
É almoço ou jantar? Agora, é almoço. À noite, é jantar.
Pois, concluiu a Lia. Ontem ganhei à avó, antes do jantar.
Eu fiz quatro e a avó só fez dois. |
(Tradução)
Tem de haver um
milagre no meio de tudo isto. Ou muitos milagres. Pai, o que
é um milagre, pergunta a Lia. É uma daquelas coisas que o
menino Jesus do Pessoa roubou no baú lá do céu, respondi. E
tu acreditas no céu, voltou a Lia a perguntar. Não, sim,
talvez! E no menino Jesus? Acredito no menino Jesus do
Pessoa, que roubou três milagres do baú, lá no céu e se fez
menino a sério e veio cá para baixo fazer travessuras que no
céu não podia fazer. Pai, quando fores velhinho vais para o
céu? Acho que vou. Mas se for para o inferno, também não
deve ser mau de todo.
Penso que tenho amigos nos
dois lados, não vai ser problema. O pior é cá em baixo. E
acreditas no Pai Natal, voltou a Lia à luta. Mais do que
muita gente pensa. Gostavas de estar lá no pólo norte a
ajudá-lo a preparar as prendas para os meninos? Já lá estive
e gostei. Muito mesmo. Então, viste as renas! E também vi o
trenó e os iglos de neve e gelo. Mas, pai, lá dentro são
fofinhos e quentes, não são?! Claro, os esquimós sabem como
essas coisas se fazem. E eles ajudam o Pai Natal? São as
pessoas mais indicadas, até porque estão habituados ao frio
lá da zona. Os esquimós têm sempre o nariz vermelho, como o
pai Natal, comentou a Lia. Pois é, reforcei. Pai, queres
jogar comigo ao peixinho?
Agora, não posso. Estou a
escrever a nossa conversa. Então, depois do almoço. É almoço
ou jantar? Agora, é almoço. À noite, é jantar. Pois,
concluiu a Lia. Ontem ganhei à avó, antes do jantar. Eu fiz
quatro e a avó só fez dois. |
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O Mágico das Flautas
Quando o vento soprava do lado do mar
e era tempo seco, João Socorro afirmava para quem o quisesse ouvir
que não era ainda tempo de colher canas.
Quem o conhecia percebia claramente o
que ele queria dizer.
Mas um dia enganou-se.
Passando por uma propriedade em que as
canas eram
aos milhões, não resistiu a fazer a
sua colheita, muito embora a maior parte de sua eleição já estivesse
em outras mãos. Provavelmente pelo proprietário do terreno que achou
por bem vindimar o canavial.
Tal situação até agradou ao senhor
Socorro, como era conhecido na vilória lá do sítio da cana.
Conheci-o em vésperas de uma festa
anual e antiga, por alturas da primavera, transportando um sem
número de varas debaixo do braço.
Meti conversa e perguntei-lhe se era
para fazer empas em alguma sementeira. Que não, respondeu-me.
E continuou no seu passo normal e
calmo.
Só que não desisti e comecei uma
discreta perseguição ao estado de espírito do homem que desafiou a
profunda curiosidade de todo o ser humano e dos gatos.
Como parou numa curva do caminho, para
atar uma das botas que calçava, facilmente o alcancei e voltei à
carga.
Pareceu-me que o humor do dia não
seria dos melhores e, apesar de tudo, atrevi-me a fazer a pergunta
com outros modos, com uma introdução personalizada da minha parte.
Do género: também semeei feijão este
ano, mas ainda não cresceu o suficiente para ser necessário
colocar-lhe ajudas. O Ti João sorriu. Trocista, penso.
Vai daí, disse-me "quer saber para que
quero estas canas, venha comigo que eu mostro-lhe".
Resultou! Não sem que antes começasse
um interrogatório do outro lado que muita gente não gosta de
receber.
Amor com amor se paga, pensei. E fomos
prosseguindo no caminho de terra batida, por vezes com pedras e
bocados de tijolos deitados um pouco ao acaso durante a época
invernosa.
Chegados a sua casa, Ti João avisou-me
que ia esperar um pouco. Que não fazia mal, respondi-lhe. Dirigiu-se
para as traseiras, demorou alguns minutos e regressou a limpar uma
mão na outra. Meteu a mão ao bolso e tirou uma chave. Calmamente,
meteu-a na fechadura, puxou a porta, abriu-a e deu-me ordem de
entrada. Recusei ser o primeiro a entrar. Puxou-me pelo braço.
Aceitei.
Em passos de homem vivido, guardou a
chave de casa e dirigiu-se para uma das portas que ligava a entrada
a outras zonas do seu mundo. Voltou pouco depois com uma garrafa na
mão. Pela cor percebi que devia ser vinho tinto. "Vai provar uma boa
pinga feita por mim", avisou. Gosta?, acrescentou. Pelo meu sinal de
olhos e cabeça percebeu aceitação.
Um copo de saúde e algumas cerejas de
conversa, Ti João ia finalmente revelar-me o resultado da sua
parcimoniosa escolha de canas e do seu paciente e sábio artesanato
pessoal.
Abriu um armário, pintado com aquela
arte de Alentejo quente e árido, mostrou-me um festival de flautas,
que meus olhos engoliram em seco, e segredou-me: este é o meu
tesouro.
E duma destas canas que hoje trouxe
foi fazer uma para si. Volte por cá um dia destes.
Disse-lhe que sim. Agradeci, já cá
fora, e voltei a fazer o caminho do encalce que me levaria ao
santuário de João Socorro, o mágico das flautas.
Claro que um dia destes volto lá.
Quero aprender a tocar flauta!
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