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Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

 

 

 

 

Barros Alves


 

O Nascimento do Salvador


Era triste e dorida a madrugada.
Nenhum gesto do tempo, nenhum som
Que pré-anunciasse algo de bom
Naquela estrebaria abandonada...

Não se via andarilho pela estrada
Que levava à cidade de Belém.
Nenhuma alma vivente. Ali, ninguém.
Somente um carpinteiro e sua amada.

E em meio aos animais da estrebaria,
Do ventre puro e excelso de Maria
Surgiu a Luz do Amor, a Claridade...

O mundo se encantou naquele dia.
Hosana nas alturas!, se ouviria.
Nascera o Salvador da Humanidade.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Colle,  The Return, 1837

 

 

 

 

 

Barros Alves


 

ETERNO APAIXONADO


Viver o amor é cometer loucuras,
É apaixonar-se desabridamente.
É morrer de prazer e, de repente,
Esquecer pundonores e posturas.

Muito amar é perder a compostura
Ante as normas que essa pobre gente
Quer-nos impingir hipocritamente,
Mas, o amante a rechaça com bravura.

Pois se amar loucamente é vil pecado,
Que nos deixa do céu ao desabrigo,
Pobre de mim! Sou louco apaixonado.

Desde o ventre materno condenado
Da vida levarei para o jazigo
O jugo desse amor desesperado.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion, detail

 

 

 

 

 

Barros Alves


 

A UM MENDIGO


Hoje eu senti a dor que abrasa os entes
Exposta em face exangue e mui sofrida;
Eu vi a dor que dilacera a vida,
Olhar de angústia, magras mãos trementes.

Vi de perto a miséria dos viventes
Sem pão, sem teto; alma combalida
A transportar a vida mal vivida
Dos desgraçados. Miseráveis gentes!

Acercou-se de mim. Pobre mendigo!
Mão estendida, triste olhar pedinte
Como se nem mais Deus lhe fosse ouvinte.

Desventura voz! Eu não consigo
Esquecê-la jamais. Voz que consome:
- Uma esmola, senhor, pois tenho fome...
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Morte de César, detalhe

 

 

 

 

 

Barros Alves


 

A DÁDIVA DA CHUVA


Sóis frementes se espargem sobre as frontes
Tornando a dor um gesto polissêmico.
A terra está crestada, o ar endêmico;
Brotam suores como brotam fontes.

É delírio febril de mil amantes,
É a face de um deus duro e polêmico,
É a ira de um ser esquizofrênico
Contra os sonhos de povos arquejantes.

Mas, na terra de gente tão sofrida
Onde a busca se faz em bruta lida
Surge um raio de luz onde é sombrio.

De surpresa cai chuva e surge a vida
Fenecendo o calor de fero estio.
E a terra, então crestada, entra no cio.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), Girl, detail

 

 

 

 

 

Barros Alves


 

SONETOS HERÉTICOS

I

Cristo, o mito maior da humanidade,
A nós chegou por força do Evangelho.
Mateus, Marcos, Lucas, João, o velho,
Vêm há muito enganando a cristandade.

Pregando a paz, o amor, a caridade,
Esses quatro não deram bom conselho,
Porque por sobre o mundo cai o relho
Com força, com sadismo e crueldade.

O mundo é todo feito de maldade,
De trevas, sem lugar para Jesus,
Por desígnio da própria Divindade.

A tragédia do Cristo numa cruz
É recado fatal pra humanidade:
- O último que sair apague a luz!

II

Caim matou Abel, primeiro crime
Que a fera humana no mundo cometeu,
E desde aquele tempo a fera imprime
No mundo todo o mal que Deus lhe deu.

Se houve algum bem no mundo, feneceu.
E o Deus que dizem Santo e que redime
Matou seu próprio filho, o Galileu,
Sendo um Deus vingador que pune e oprime.

Se é Santo, Pai Bondoso e Sapiente
Por que não leva bálsamo ao desgraçado
E não amaina a dor de tanta gente?

O homem é um ser tão desesperado
Que se há um Deus é fraco e negligente,
Um poço de omissão, despreparado.

III

O Deus de Salomão, feliz burguês,
É Deus de classe que massacra o pobre.
Para essa Divindade só tem vez
O que tem cabedal, o rico, o nobre.

E o Deus de Jó? Cruel e descortês
Tomou-lhe herança, a paz, o pão e o cobre,
Fê-lo de Satanás presa e freguês...
Maldade assim, bem sei, não há quem obre!!!

Um Deus que proibiu o herói Moisés
Na Terra Prometida pôr os pés
É Ser que impõe vingança e opressão.

Est’outro Deus de amor e de esperança
Só serve pra suprir a insegurança
E a vã credulidade do cristão.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Judgment of Solomon

 

 

 

 

 

Barros Alves


 

NA LAMA


Na lama estamos todos mergulhados
Já desde a mais remota antiguidade
Quando os primeiros seres lá criados
Vagavam em busca de felicidade.

No tempo, caminhando amedrontados,
Só encontramos dores e maldade,
E mil mentiras, gestos abusados,
Vilezas, traições, deslealdade.

Caminheiros, pois, enlameados
Por angústias, dores e atos vis,
Somos todos carentes da Verdade.

Pra tudo há respostas pueris:
- “Não temais, ó incréus desesperados,
Pois tudo é como quer a Divindade”.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

Barros Alves


 

NO INFERNO


Morri, fui ao inferno e vi primeiro
Prelados de alta estirpe em negra trama,
Vi líderes, pastores de alta fama
Em conluio com velhos feiticeiros.

Presbíteros astutos e matreiros,
Que por um nada aqui faziam dramas,
Lá eu os vi ardendo em muitas chamas,
Aos safanões por cargos e dinheiros.

Então, eu perguntei aos diabos chefes:
- De onde vieram tantos mequetrefes?
De qual país, de qual sociedade?

E responderam os tais que o Sempiterno
Enviou pras profundas do inferno
Todos os santarrões da Cristandade.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Triumph of Neptune

 

 

 

 

 

Barros Alves


 

NO CÉU


Depois subi ao céu e a Divindade
Disse-me logo que não me refuta,
Pois nunca confiou na Cristandade
E acha que a Igreja é mui fajuta.

A trôpega e infiel humanidade
Disse ter feito mesmo vil e bruta.
E O vi irradiar felicidade
Entre bêbados, ladrões e prostitutas.

No céu não vi nenhuma majestade,
Não vi príncipe, princesa, não vi rei,
Não vi o Papa nem a sua grei.

Lá vi a plebe vil da humanidade,
Vi malandros, famintos – já nem sei!
Vi os sem-terra, os sem-teto e os sem-lei...
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Rebecca at the Well

 

 

 

 

 

Barros Alves


 

SONETOS PARA O SERRA

I

Mandou-me o Serra poesia extensa
Versos piegas de consolação,
Poema grávido de esperança imensa
Um largo aceno pra conformação.

Ora, a realidade é confusão
Por mais que nos console a tua crença,
A miséria do mundo é maldição
Que não permite nenhuma indiferença.

Constato no poema o que eu já disse:
Se é certo que a divindade existe
Está cego pros males que há na Terra.

O mundo jaz no mal? Que sorte triste!!!
Procuro paz no mundo e vejo é guerra
Não vejo o amor de que me fala o Serra.

II

Revolvo o tempo e desde a antiguidade
Vejo o mundo mergulhado em maldições,
Amor e paz não passam de ilusões
Esperança sem fim da humanidade.
Não vejo nos semblantes caridade,
Somos lobos de atrozes corações,
No mundo as mais estranhas perversões
São sorvidas com naturalidade.

A bondade o bom Serra quer que eu veja
Na fera humana que em vão peleja
Debaixo de uma eterna maldição.

Até Jesus faliu nessa missão,
Mesmo o “bom” Deus negou-lhe compaixão...
Nisso faliu também a própria Igreja.

III

O que é bom dura pouco, o mal persiste
Sem dó, sem piedade, sem clemência
Um olha o outro já com o dedo em riste
E sem um pingo de benevolência.

Sei que o cristianismo não resiste
Ao exame detido da ciência,
Porém, enquanto mata, o homem insiste
Que está matando pra fazer clemência.

Entredevoram-se os homens com maldade,
Somos todos discípulos de Sade,
Amar é verbo de pompa... e circunstância.

Quem dá a outra face de verdade?
Quem ama o que não traz felicidade?
Onde mora, de fato, a Tolerância?
 

 

 

 

 

 

 

15/07/2005