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Um esboço de Da Vinci

 

 

Cecília Meireles


Depois do sol...
 

Fez-se noite com tal mistério,
Tão sem rumor, tão devagar,
Que o crepúsculo é como um luar
Iluminando um cemitério . . .
 

Tudo imóvel . . . Serenidades . . .
Que tristeza, nos sonhos meus!
E quanto choro e quanto adeus
Neste mar de infelicidades!
 

Oh! Paisagens minhas de antanho . . .
Velhas, velhas . . . Nem vivem mais . . .
— As nuvens passam desiguais,
Com sonolência de rebanho . . .
 

Seres e coisas vão-se embora . . .
E, na auréola triste do luar,
Anda a lua, tão devagar,
Que parece Nossa Senhora


Pelos silêncios a sonhar . . .
 

William Blake (British, 1757-1827), Angels Rolling Away the Stone from the Sepulchre

 

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Cecília Meireles


Suavíssima
 

Os galos cantam, no crepúsculo dormente . . .
No céu de outono, anda um langor final de pluma
Que se desfaz por entre os dedos, vagamente . . .
 

Os galos cantam, no crepúsculo dormente . . .
Tudo se apaga, e se evapora, e perde, e esfuma . . .
 

Fica-se longe, quase morta, como ausente . . .
Sem ter certeza de ninguém . . . de coisa alguma . . .
Tem-se a impressão de estar bem doente, muito doente,
 

De um mal sem dor, que se não saiba nem resuma . . .
E os galos cantam, no crepúsculo dormente . . .
 

Os galos cantam, no crepúsculo dormente . . .
A alma das flores, suave e tácita, perfuma
A solitude nebulosa e irreal do ambiente . . .
 

Os galos cantam, no crepúsculo dormente . . .
Tão para lá! . . . No fim da tarde . . . além da bruma . . .
 

E silenciosos, como alguém que se acostuma
A caminhar sobre penumbras, mansamente,
Meus sonhos surgem, frágeis, leves como espuma . . .
 

Põem-se a tecer frases de amor, uma por uma . . .
E os galos cantam, no crepúsculo dormente . . .
 

 William Blake (British, 1757-1827), Christ in the Sepulchre, Guarded by Angels

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova. 1864.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido

 

 

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Cecília Meireles


Marinha


O barco é negro sobre o azul.
 

Sobre o azul os peixes são negros.
 

Desenham malhas negras as redes, sobre o azul.
 

Sobre o azul, os peixes são negros.
Negras são as vozes dos pescadores,
atirando-se palavras no azul.
 

É o último azul do mar e do céu.
 

A noite já vem, dos lados de Burma,
toda negra,
molhada de azul:
 

— a noite que chega também do mar.
 

 William Bouguereau (French, 1825-1905), L'Innocence

 

Bronzino, Vênus e Cupido

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Herbert Draper (British, 1864-1920) , Tha water nixie

 

 

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Cecília Meireles


Pássaro
 

Aquilo que ontem cantava
já não canta.
Morreu de uma flor na boca:
não do espinho na garganta.
 

Ele amava a água sem sede,
e, em verdade,
tendo asas, fitava o tempo,
livre de necessidade.
 

Não foi desejo ou imprudência:
não foi nada.
E o dia toca em silêncio
a desventura causada.
 

Se acaso isso é desventura:
ir-se a vida
sobre uma rosa tão bela,
por uma tênue ferida.
 

Maura Barros de Carvalho, Tentativa de retrato da alma do poeta

 

Albrecht Dürer, Mãos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal de Filosofia

 

 

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Cecília Meireles


Máquina breve
 

O pequeno vaga-lume
com sua verde lanterna,
que passava pela sombra
inquietando a flor e a treva
— meteoro da noite, humilde,
dos horizontes da relva;
o pequeno vaga-lume,
queimada a sua lanterna,
jaz carbonizado e triste
e qualquer brisa o carrega:
mortalha de exíguas franjas
que foi seu corpo de festa.
 

Parecia uma esmeralda
e é um ponto negro na pedra.
Foi luz alada, pequena
estrela em rápida seta.
Quebrou-se a máquina breve
na precipitada queda.
E o maior sábio do mundo
sabe que não a conserta.
 

A menina afegã

 

Culpa

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravaggio, A incredulidade de São Tomé

 

 

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Cecília Meireles


De um lado cantava o sol
 

De um lado cantava o sol,
do outro, suspirava a lua.
No meio, brilhava a tua
face de ouro, girassol!
 

Ó montanha da saudade
a que por acaso vim:
outrora, foste um jardim,
e és, agora, eternidade!
De longe, recordo a cor
da grande manhã perdida.
Morrem nos mares da vida
todos os rios do amor?
 

Ai! celebro-te em meu peito,
em meu coração de sal,
Ó flor sobrenatural,
grande girassol perfeito!
 

Acabou-se-me o jardim!
Só me resta, do passado,
este relógio dourado
que ainda esperava por mim . . .
 

Um cronômetro para piscinas

 

José Saramago, Nobel

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion, detail

 

 

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Cecília Meireles


Cronista enamorado do sagüim
 

O sagüim é um animalzinho assaz bonito:
é mesmo o mais bonito de todos, pela selva;
anda nas árvores, esconde-se, espia, foge depressa
e há deles, na terra viçosa, número infinito.
 

Se qualquer rei da Europa o visse, gostaria
de possuí-lo como um brinquedo, vindo de longe, e raro.
Mas é o sagüim animalzinho tão delicado
que a uma viagem tão longa não resistiria.
 

A cara do sagüim é como a de um leãozinho,
e pode-se conseguir que ele pouse no nosso ombro.
O sagüim mais bonito de todos é o sagüim louro,
que tem uma expressão de inteligência e carinho.
 

Ele pode descer a comer à nossa mão! Graciosa
é a sua maneira de olhar. Gracioso é o movimento do seu corpo inteiro,
tão leve e breve! Mas os melhores, só no Rio de Janeiro
se encontram: se encontram apenas nesta cidade, a mui formosa.
 

Blake, O compasso de Deus

 

Octavio Paz, Nobel

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

 

 

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Cecília Meireles


Romance II ou do ouro incansável
 

Mil bateias vão rodando
sobre córregos escuros;
a terra vai sendo aberta
por intermináveis sulcos;
infinitas galerias
penetram morros profundos.
 

De seu calmo esconderijo,
o ouro vem, dócil e ingênuo;
torna-se pó, folha, barra,
prestígio, poder, engenho . . .
É tão claro! — e turva tudo:
honra, amor e pensamento.
 

Borda flores nos vestidos,
sobe a opulentos altares,
traça palácios e pontes,
eleva os homens audazes,
e acende paixões que alastram
sinistras rivalidades.
 

Pelos córregos, definham
negros a rodar bateias.
Morre-se de febre e fome
sobre a riqueza da terra:
uns querem metais luzentes,
outros, as redradas pedras.
 

Ladrões e contrabandistas
estão cercando os caminhos;
cada família disputa
privilégios mais antigos;
os impostos vão crescendo
e as cadeias vão subindo.
 

Por ódio, cobiça, inveja,
vai sendo o inferno traçado.
Os reis querem seus tributos,
— mas não se encontram vassalos.
Mil bateias vão rodando,
mil bateias sem cansaço.
 

Mil galerias desabam;
mil homens ficam sepultos;
mil intrigas, mil enredos
prendem culpados e justos;
já ninguém dorme tranqüilo,
que a noite é um mundo de sustos.
 

Descem fantasmas dos morros,
vêm almas dos cemitérios:
todos pedem ouro e prata,
e estendem punhos severos,
mas vão sendo fabricadas
muitas algemas de ferro.
 

Michelangelo, Pietá

 

Valdir Rocha, Fui eu

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Morte de César, detalhe

 

 

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Cecília Meireles


Romance XXI ou das idéias
 

A vastidão desses campos.
A alta muralha das serras.
As lavras inchadas de ouro.
Os diamantes entre as pedras.
Negros, índios e mulatos.
Almocrafes e gamelas.
 

Os rios todos virados.
Toda revirada, a terra.
Capitães, governadores,
padres intendentes, poetas.
Carros, liteiras douradas,
cavalos de crina aberta.
A água a transbordar das fontes.
Altares cheios de velas.
Cavalhadas. Luminárias.
Sinos, procissões, promessas.
Anjos e santos nascendo
em mãos de gangrena e lepra.
Finas músicas broslando
as alfaias das capelas.
Todos os sonhos barrocos
deslizando pelas pedras.
Pátios de seixos. Escadas.
Boticas. Pontes. Conversas.
Gente que chega e que passa.
E as idéias.
 

Amplas casas. Longos muros.
Vida de sombras inquietas.
Pelos cantos da alcovas,
histerias de donzelas.
Lamparinas, oratórios,
bálsamos, pílulas, rezas.
Orgulhosos sobrenomes.
Intrincada parentela.
No batuque das mulatas,
a prosápia degenera:
pelas portas dos fidalgos,
na lã das noites secretas,
meninos recém-nascidos
como mendigos esperam.
Bastardias. Desavenças.
Emboscadas pela treva.
Sesmarias, salteadores.
Emaranhadas invejas.
O clero. A nobreza. O povo.
E as idéias.
 

E as mobílias de cabiúna.
E as cortinas amarelas.
Dom José. Dona Maria.
Fogos. Mascaradas. Festas.
Nascimentos. Batizados.
Palavras que se interpretam
nos discursos, nas saúdes . . .
Visitas. Sermões de exéquias.
Os estudantes que partem.
Os doutores que regressam.
(Em redor das grandes luzes,
há sempre sombras perversas.
Sinistros corvos espreitam
pelas douradas janelas.)
E há mocidade! E há prestígio.
E as idéias.
 

As esposas preguiçosas
na rede embalando as sestas.
Negras de peitos robustos
que os claros meninos cevam.
Arapongas, papagaios,
passarinhos da floresta.
Essa lassidão do tempo
entre imbaúbas, quaresmas,
cana, milho, bananeiras
e a brisa que o riacho encrespa.
Os rumores familiares
que a lenta vida atravessam:
elefantíase; partos;
sarna; torceduras; quedas;
sezões; picadas de cobras;
sarampos e erisipelas . . .
Candombeiros. Feiticeiros.
Ungüentos. Emplastos. Ervas.
Senzalas. Tronco. Chibata.
Congos. Angolas. Benguelas.
Ó imenso tumulto humano!
E as idéias.
 

Banquetes. Gamão. Notícias.
Livros. Gazetas. Querelas.
Alvarás. Decretos. Cartas.
A Europa a ferver em guerras.
Portugal todo de luto:
triste Rainha o governa!
Ouro! Ouro! Pedem mais ouro!
E sugestões indiscretas:
Tão longe o trono se encontra!
Quem no Brasil o tivera!
Ah, se Dom José II
põe a coroa na testa!
Uns poucos de americanos,
por umas praias desertas,
já libertaram seu povo
da prepotente Inglaterra!
Washington. Jefferson. Franklin.
(Palpita a noite, repleta
de fantasmas, de presságios . . .)
E as idéias.
 

Doces invenções da Arcádia!
Delicada primavera:
pastoras, sonetos, liras,
— entre as ameaças austeras
de mais impostos e taxas
que uns protelam e outros negam.
Casamentos impossíveis.
Calúnias. Sátiras. Essa
paixão da mediocridade
que na sombra se exaspera.
E os versos de asas douradas,
que amor trazem e amor levam . . .
Anarda. Nise. Marília . . .
As verdades e as quimeras.
Outras leis, outras pessoas.
Novo mundo que começa.
Nova raça. Outro destino.
Planos de melhores eras.
E os inimigos atentos,
que, de olhos sinistros, velam.
E os aleives. E as denúncias.
E as idéias.

 

Hélio Rola

 

Herbert Draper (British, 1864-1920), A water baby

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Colle,  The Return, 1837

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Cecília Meireles


Coliseu
 

Cem mil pupilas houve:
— cem mil pupilas fitas na arena.
Os olhos do Imperador, dos patrícios,
dos soldados, da plebe.
 

Os olhos da mulher formosa que os poetas cantaram.
 

E os olhos da fera acossada,
do lado oposto.
Os olhos que ainda brilham fulvos,
agora, na eternidade igual de todos.
 

Cem mil pupilas:
— ilustres, insensatas, ferozes, melancólicas,
vagas, severas, lânguidas . . .
Cem mil pupilas vêem-se, na poeira da pedra deserta.
 

Entre corredores e escadas,
o cavo abismo do úmido subsolo
exala os soturnos prazeres da antiguidade:
 

Um vozeiro arcaico vem saindo da sombra,
— ó duras vozes romanas! —
um quente sangue vem golfando,
— ó negro sangue das feras!
um grande aroma cruel se arredonda nas curvas pedras.
— Ó surdo nome trêmulo da morte!
 

(Não cairão jamais estas paredes,
pregadas com este sangue e este rugido,
a garra tensa, a goela arqueada em vácuo,
as cordas do humano pasmo sobre o último estertor . . .)
 

Cem mil pupilas ficam aqui,
pregadas nas pedras do tempo,
manchadas de fogo e morte,
no fim do dia trágico,
depois daquela ávida e acesa coincidência
quando convergiram nesta arena de angústia,
que hoje é pó e silêncio,
esboroada solidão.
 

(As pregas dos vestidos deslizaram, frágeis.
E os sorrisos perderam-se, fúteis.
Sobre o enorme espetáculo, que foi o aroma dos cosméticos?)
 

Ruth, by Francesco Hayez

 

Albert-Joseph Pénot (French, 1870-?), Nude with red flowers in hair