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José Saramago


 

Poema para Luís de Camões


Meu amigo, meu espanto, meu convívio,
Quem pudera dizer-te estas grandezas,
Que eu não falo do mar, e o céu é nada
Se nos olhos me cabe.
A terra basta onde o caminho pára,
Na figura do corpo está a escala do mundo.
Olho cansado as mãos, o meu trabalho,
E sei, se tanto um homem sabe,
As veredas mais fundas da palavra
E do espaço maior que, por trás dela,
São as terras da alma.
E também sei da luz e da memória,
Das correntes do sangue o desafio
Por cima da fronteira e da diferença.
E a ardência das pedras, a dura combustão
Dos corpos percutidos como sílex,
E as grutas do pavor, onde as sombras
De peixes irreais entram as portas
Da última razão, que se esconde
Sob a névoa confusa do discurso.
E depois o silêncio, e a gravidade
Das estátuas jazentes, repousando,
Não mortas, não geladas, devolvidas
À vida inesperada, descoberta,
E depois, verticais, as labaredas
Ateadas nas frontes como espadas,
E os corpos levantados, as mãos presas,
E o instante dos olhos que se fundem
Na lágrima comum. Assim o caos
Devagar se ordenou entre as estrelas.

Eram estas as grandezas que dizia
Ou diria o meu espanto, se dizê-las
Já não fosse este canto.


(in PROVAVELMENTE ALEGRIA, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1985, 3ª Edição)



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Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), Girl, detail

José Saramago



Na ilha por vezes habitada


Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
manhãs e madrugadas em que não precisamos de
morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra
em nós uma grande serenidade, e dizem-se as
palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas
mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a
vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o
sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos
ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.


(in PROVAVELMENTE ALEGRIA, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1985, 3ª Edição)



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Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova. 1864.

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Nei Duclós

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion, detail

José Saramago


 

Protopoema


Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos
nós cegos, puxo um fio que me aparece solto.
Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os
dedos.
É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos,
e tem a macieza quente do lodo vivo.
É um rio.
Corre-me nas mãos, agora molhadas.
Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de
repente não sei se as águas nascem de mim, ou para
mim fluem.
Continuo a puxar, não já memória apenas, mas o
próprio corpo do rio.
Sobre a minha pele navegam barcos, e sou também os
barcos e o céu que os cobre e os altos choupos que
vagarosamente deslizam sobre a película luminosa
dos olhos.
Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas
águas como os apelos imprecisos da memória.
Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga.
Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e
firme pulsar do coração.
Agora o céu está mais perto e mudou de cor.
É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo
acorda o canto das aves.
E quando num largo espaço o barco se detém, o meu
corpo despido brilha debaixo do sol, entre o
esplendor maior que acende a superfície das águas.
Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas
da memória e o vulto subitamente anunciado do
futuro.
Uma ave sem nome desce donde não sei e vai pousar
calada sobre a proa rigorosa do barco.
Imóvel, espero que toda a água se banhe de azul e que
as aves digam nos ramos por que são altos os
choupos e rumorosas as suas folhas.
Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem,
sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas
verticais circundam.
Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra
viva.
Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se
juntarem às mãos.
Depois saberei tudo.


(in PROVAVELMENTE ALEGRIA, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1985, 3ª Edição)


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Um esboço de Da Vinci

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Jorge Tufic

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Morte de César, detalhe

José Saramago



Eu luminoso não sou


Eu luminoso não sou. Nem sei que haja
Um poço mais remoto, e habitado
De cegas criaturas, de histórias e assombros.
Se, no fundo poço, que é o mundo
Secreto e intratável das águas interiores,
Uma roda de céu ondulando se alarga,
Digamos que é o mar: como o rápido canto
Ou apenas o eco, desenha no vazio irrespirável
O movimento de asas. O musgo é um silêncio,
E as cobras-d'água dobram rugas no céu,
Enquanto, devagar, as aves se recolhem.


(in PROVAVELMENTE ALEGRIA, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1985, 3ª Edição)


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Herbert Draper (British, 1864-1920), A water baby

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Dimas Macedo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), A Classical Beauty

José Saramago



2
 


Os habitantes da cidade doente de peste estão
reunidos na praça grande que assim ficou conhecida
porque todas as outras se atulharam de ruínas

Foram tirados das suas casas por uma ordem
que ninguém ouviu

Porém segundo estava escrito em lendas anti-
quíssimas haveria vozes vindas do céu ou trom-
betas ou luzes extraordinárias e todos quiseram
estar presentes

Alguma coisa podia talvez suceder no mundo
antes do triunfo final da peste nem que fosse uma
peste maior

Ali estão pois na praça angustiados e em silêncio
à espera

E depois nada mais se ouve que uma aérea e
delicada música de cravo

Qualquer fuga composta há duzentos e cin-
qüenta anos por João Sebastião Bach em Leipzig

É então que os homens e as mulheres sem espe-
rança se deixam cair no pavimento estalado da praça

Enquanto a música se afasta e voa sobre os cam-
pos desvastados



(in O Ano 1993)


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Bronzino, Vênus e Cupido

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Myriam Fraga

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Memories, detail

José Saramago



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O interrogatório do homem que saiu de casa de-
pois da hora de recolher começou há quinze dias e
ainda não acabou

Os inquiridores fazem uma pergunta em cada
sessenta minutos vinte quatro por dia e exi-
gem cinqüenta e nove respostas diferentes para
cada uma

É um método novo

Acreditam que é impossível não estar a resposta
verdadeira entre as cinqüenta e nove que foram
dadas

E contam com a perspicácia do ordenador para
descobrir qual delas seja e a sua ligação com as
outras

Há quinze dias que o homem não dorme nem
dormirá enquanto o ordenador não disser não pre-
ciso de mais ou o médico não preciso de tanto

Caso em que terá o seu definitivo sono

O homem que saiu de casa depois da hora de
recolher não dirá por que saiu

E os inquiridores não sabem que a verdade está
na sexagésima resposta

Entretanto a tortura continua até que o médico
declare

Não vale a pena



(in O Ano 1993)


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John William Waterhouse , 1849-1917 -The Lady of Shalott

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Francisco Carvalho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Antigona,detail

José Saramago



6
 


Um dos resultados da catástrofe foi que de uma
hora para a outra os animais domésticos deixaram
de o ser

A primeira vítima de que houve notícia foi a
mulher do governador escolhido pelo ocupante

Quando o macaco amestrado que a divertia nas
horas de aborrecimento a crucificou no portão do
jardim enquanto as galinhas saíram da capoeira para
vir arrancar-lhe à bicada as unhas dos pés

Muitas velhinhas inocentes foram arranhadas
por gatos castrados de estimação em memória do
atentado sofrido

E numerosas crianças ficaram infelizmente cegas
pelos bicos agudos das aves que se atiravam dos ra-
mos e das alturas como pedras

Privadas dos animais domésticos as pessoas
dedicaram-se activamente ao cultivo de flores

Destas não há que esperar mal se não for dada
excessiva importância ao recente caso de uma rosa
carnívora



(in O Ano 1993)


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Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

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Luís Antonio Cajazeira Ramos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Andreas Achenbach, Germany (1815 - 1910), A Fishing Boat

José Saramago



14
 


Nos quatro pontos cardeais os vigias defendem o
sono cansado da tribo ou rebanho de gente que va-
gueia pelos campos

Um homem ao norte uma mulher ao sul outro
homem a oriente e a ocidente a segunda mulher

Estão sentados de pernas cruzadas atentos a to-
das as sombras e gritam quando há perigo

Mas porque os perseguidores não gostam de
atacar na escuridão a noite decorre muitas vezes
calma apenas fria

Ao amanhecer a tribo acorda e divide-se em
quatro grupos conforme os pontos cardeais e vai
agradecer aos vigias a vida conservada

Depois o homem do norte e a mulher do sul o
homem do oriente e a mulher do ocidente juntam os
sexos porque assim foi decidido que deveria aconte-
cer todas as manhãs

Enquanto a união dura cantam em redor a única
canção feliz que não esqueceram

O sol levanta-se sobre os quatro corpos nus que
são a esperança inconsciente da tribo

Entretanto acende-se a primeira fogueira e o
fumo azul da lenha sobe para o céu



(in O Ano 1993)


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Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

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Maria Maia

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

José Saramago



16
 


Podia ter acontecido a qualquer hora do dia

Quando debaixo do sol a horda se deslocasse na
rasa e dura planície

Ou quando à sombra de uma rocha alta acredi-
tasse no fim dos males do mundo só porque ali uma
frescura passageira os tornava distantes

Ou quando a penumbra miserável fizesse apete-
cer uma lenta dissolução no espaço

Mas foi de noite na negrura aflita da caverna lá
onde só o olho vermelho das brasas tinha pena dos
homens

E onde o cheiro dos corpos humilhados de gases
de suor de descargas de sémen

E onde intermináveis insónias se resolviam em
suicídios

Que subitamente um homem descobriu que não
sabia ler

Em vão recordava as letras em vão as desenhava
ele próprio na memória

Eram riscos cegos na escuridão desenhos de
Marte Mercúrio ou Plutão ou ainda a escrita do sis-
tema planetário da Betelgeuse

Nada que fosse humano e fraterno nada que ti-
vesse o gosto comum do pão e do sal

Quando o sol nasceu e a horda saiu para o ar
livre e para o mundo aprisionado

O homem sentou-se no chão dobrado como um
feto

E prometeu morrer sem resistência se a lepra
que lhe nascera durante a noite não fosse nunca des-
coberta pelos companheiros que talvez ainda soubes-
sem ler



(in O Ano 1993)



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Hélio Rola

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Jorge Medauar

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

José Saramago



29
 


Levantou-se então um grande vento que varreu
de estrema a estrema entre o mar e a fronteira a
terra dos homens

Durante três dias soprou constante arrastando
as nuvens dos incêndios e o cheiro da carne morta
dos invasores

Durante três dias as árvores foram sacudidas
mas nenhuma arrancada porque este vento era igual
a uma mão apenas firme

As carcaças dos animais mecânicos rolavam pe-
las planícies como arbustos desenraizados e tudo era
arrastado para longe para os países onde os pesade-
los nascem e o terror

Depois choveu e a terra ficou subitamente verde
com um enorme arco-íris que não se desvaneceu
nem quando o sol se pôs

Nessa primeira noite ninguém dormiu e toda a
gente saiu das cidades para ver melhor as sete cores
contra o fundo negríssimo do céu

E houve quem chorasse de joelhos na terra
branda nas ervas que rescendiam do vertiginoso
cheiro do húmus

E houve quem ininterruptamente cantasse uma
extática melodia não ouvida antes que era o longo
suspiro soluço da vida que nascendo se sufoca plena
na garganta

E pelos campos fora arderam fogueiras altas que
fizeram da terra vista do espaço um outro céu
estrelado

E um homem e uma mulher caminharam entre a
noite e as ervas naturais e foram deitar-se no lugar
precioso onde nascia o arco-íris

Ali se despiram e nus debaixo das sete cores fo-
ram toda a noite um novelo de vida murmurante so-
bre a erva calcada e cheirosa das seivas derramadas

Enquanto longe no mar o outro ramo do arco-
-íris mergulhava até ao fundo das águas e os peixes
deslumbrados giravam em redor da luminosa coluna

O dia amanheceu numa terra livre por onde cor-
riam soltos e claros os rios e onde as montanhas
azuis mal repousavam sobre as planícies

A mulher e o homem voltaram à cidade dei-
xando pelo chão um rasto de sete cores lentamente
diluídas até se fundirem no verde absoluto dos
prados

Aqui os animais verdadeiros pastavam erguen-
do os focinhos húmidos de orvalho e as árvores
carregavam-se de frutos pesados e ácidos enquanto
no interior delas se preparavam as doce combi-
nações químicas do outono

Entretanto o arco-íris tem voltado todas as noi-
tes e isso é um bom sinal



(in O Ano 1993)


Remetente: Alicia - alicevilafabiao@mail.telepac.pt
 

   

 

Franz Xaver Winterhalter. Yeda

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Micheliny Verunschk