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Gláucia Lemos


 

Porque os Sinos Dobram


Uns rumores de guisos cor de prata
rompem duros silêncios, magras pedras,
ante a turba de cães que se esfacela
numa guerra de loucos e de boêmios.
Quero só dividir-me entre os abrigos
das cavernas cavadas no horizonte
e entre guisos e tímbalos gigantes
festejar em canções os portulanos.

Levo em mim nessa fuga desabrida
os silêncios que venho navegando
entre as pedras que calçam meus anseios.

Assim vou pelos mármores mais frios,
esgarçando razões tão imprecisas
rumo ao pouso fatal dos deserdados.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Picador

 

 

 

 

 

Gláucia Lemos


 

Reflexos


Os gritos são levados pelo vento,
e os ícones se quebram nas vitrines.
Cristais feridos marcam cicatrizes,
rachados das velhíssimas memórias.

Vibra no ar um rumor, uma agonia,
cavalos rubros cavalgando noites,
fantasmas fugidios de outras vielas,
de antigos becos úmidos de espasmos.

Galhos rotos das árvores sombrias
traçam riscos magérrimos no açoite
que a tristeza escondida escamoteia.

Restam sombras, talvez a sinfonia
de um delírio frustrado, nos retalhos
esquecidos nas dobras do vivido.

 

 

 

Rafael, Escola de Atenas, detalhes

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Vicente Freitas

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Plaza de toros

 

 

 

 

 

Gláucia Lemos



Na Hora do Sono


Amar é como andar por entre facas.
A mão de sal no meu olhar de areia.
Poder levar à boca um beijo azul,
sorrir com dentes verdes e morrer.

Calcino a minha febre primitiva
na boca esquiva e negra das noturnas.
Agudo o anseio retalhando o ventre,
e o vácuo espaço qual o olho do abismo.

Todos os contos líricos morreram.
Em ti a esfinge canta um canto branco,
sereia em barco de um Caronte músico.

Amar-te é andar incólume entre facas.
Eros folheia um livro em minha cama
até rasgar-se a folha derradeira.

 
 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Mignon Pensive

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Roberto Gobatto

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Venus with Organist and Cupid

 

 

 

 

 

Gláucia Lemos


 

Se Te Amar Não Fosse


A solidão aguça o olho da noite.
Rola no tempo o tédio da amargura.
Ah! Se te amar cantasse uma alegria
de mão a deslizar em suave colo,

se fosse como luva acetinada
que envolve a mão de que eu seria a luva
a te vestir na exatidão precisa,
a mão serias tu, e nosso, o gozo.

E se te amar um látego não fosse,
grande seria o festejar das bodas
no abraço unificando um mesmo anseio.

Ah! Se te amar não fosse como um cardo,
como horizonte turvo, como um gume,
como morrer de sede olhando um rio . . .

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922),  A Classical Beauty

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Leônidas Arruda

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Three Ages

 

 

 

 

 

Gláucia Lemos



O Anjo na Esfinge


Desértica mudez sem perpassar de brisa.
Desértica mudez. Um ciclo interminável.
Morre por hora um pássaro nas grades frias,
brotam perguntas vãs pelas paredes claras.
No meu exílio dançam as macabras bruxas.
Onde andarão os anjos de olhos de ambrosia?
Meu anjo preferido escondeu-se entre brumas
e o silêncio se fez, e bruxas gargalharam.

Selaram-se nos lábios as palavras mornas.
Um anjo se guardou no coração da esfinge
e um silêncio de pedra na esfinge ficou.

Sei, ninguém pranteará os meus pássaros mortos,
ou, dirá - delator - assustando o silêncio,
se no peito da esfinge o meu anjo ainda sonha.

 
 

 

 

Michelangelo, Pietá

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José Valgode

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

 

 

 

 

 

Gláucia Lemos


 

Como Sempre Fizeste


Planavas acima do gramado do quintal
e partias. Após anúncio de pouso,
mas voltavas. E outra vez,
namorando o meu gramado,
e partias.

Nunca te falaram que os gramados
ficam mais verdes depois?

Nunca mais deixei o espaço.
Meus olhos moram lá, no azul,
aguardando, mesmo que partas.

Porque sempre fizeste assim
para que permaneça verde
o gramado.

 

 

 

Maura Barros de Carvalhos, Tentativa de retrato da alma do poeta

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Donizete Galvão

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Exposition of Moses

 

 

 

 

 

Gláucia Lemos


 

Persona


Explicar-te a loucura como, irmã?
Já te sentir tão pura me é culpável.
Carrego teu andor na escura trilha
que a cilha de amargura impõe de resto.

Beijo-te o beijo como amante impura.
Que me possuis em aberrante incesto.
Nasci contigo em cruel xipofagia
e és a mesma agonia que sou eu.

Irmã Novasaudade, que a persona
grega me assomas a meu rosto adulto,
nela te oculto em cênicos esgares.

Ora, qual ontem, mísera, me talhas,
soluças nas migalhas do que sinto
e eu te desminto sem poder negar-te.

 

 

 

Octavio Paz, Nobel

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Ronaldo Cagiano

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

 

 

 

 

 

Gláucia Lemos


 

Instante de um Olhar


Brinca no olhar
de borbolêteas asas
vaivém de sedução.
Ah! Brisa tremulando quase táctil,
em ramo de miosótis.

Um xale de luar de lua cheia
estremecendo as águas
clareando fugaz um leve instante.

Lúdico olhar
brinca de amor.
Criança aventurando nos perigos
de mais um jogo de armar.

Brilho de olhar infantil.
Mágico tirando da cartola
pombos e flores de papel crepom
cromatismo de lenços em tênue fio,
ilusão de ilusório alado olhar
jogo de sedução.

Ah! Doce encantamento de presença
que ilumina portas
onde alguém espera.
E há um sol entre os lábios.

 

 

 

Leonardo da Vinci, Embrião

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Luís Manoel Paes Siqueira

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

Gláucia Lemos


 

Pituba


Este meu bairro à noite é como um rio,
faróis correndo pelo asfalto morto,
águas em luzes, ondulado fio
buscando algum indefinido porto.

Guardas imensos feitos de cimento
curvas cabeças vítreas em neon,
do alto interrogam dos que vão no leito
aonde irão tantos com tamanho afã.

Este meu bairro à noite, criança insone,
contempla outros insones que a contemplam
da solidão dos seus sonhares breves.

A madrugada em ruídos se consome,
e o bairro inteiro se espreguiça tenso,
no despertar do sono que não teve.

 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), Angels Rolling Away the Stone from the Sepulchre

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Andreas Achenbach, Germany (1815 - 1910), A Fishing Boat

 

 

 

 

 

Gláucia Lemos


 

Soneto do Apocalipse


O teu silêncio corta o dia claro
em postas de penumbra acinzentada.
Por mais que açoite o vento as folhas vastas,
eu nada escuto, só escuto ausências.
O teu silêncio arsênico assassina
horas de lesmas que se arrastam torpes,
e o dia é todo noite, e são fantasmas
os que andam rente a mim, sem que eu os sinta.

Silêncio pétreo... Meus ouvidos moucos
recusam-se a escutar, pois nada existe,
só horas que retalham pouco a pouco.

Uma surdez nevada se esparrama
dos fiapos deste dia que estraçalhas
com o peso do silêncio apocalíptico.

 

 

 

Valdir Rocha, Fui eu

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Nicodemos Sena

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jacques-Louis David (França, 1748-1825), A morte de Sócrates

 

 

 

 

 

Gláucia Lemos


 

Direção


A febre que se esconde sem seu grito
nenhum bardo alcançou.
Nenhum passo caleja a meu encontro,
nem palavra debruça no meu cio.

Meu caminho é agora, lá na frente
ninguém respira. Há álamos sombrios.
Eu sou caudal de rio intermitente.
Cais não conheço nem arrasto amores.

Leva-me onde for, solta, a corrente.
Meu leme é minha mão, meu lume, estrela,
meu destino é aqui, ali, alhures.

Roteiro e direção não tenho escritos,
nem me comanda voz, nem prende o pulso.
Vou aonde o olho pise, e o pé alcance.


 

 

 

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Antônio Naud Júnior

 

 

 

 

 

 

 

 

Winterhalter Franz Xavier, Alemanha, Florinda

 

 

 

 

 

Gláucia Lemos


 

Sem ter sido


Amada fora se tivera sido.
Não fosse só paisagem contemplada
por olhar tímido, por mão guardada
de algum gestual discreto ou atrevido.

Tivera amada sido, ah! fora amada
se fora, um só momento, possuída
na lascívia do amado. Ou na incontida
momentânea paixão fosse tragada.

Mas só lagoa em sono foi. Ungida
por um sopro de aragem anoitecida
no acaso de um verão de noite muda.

Nunca dizer-se amada a que, ferida,
jamais sentira em pele, acontecida a
verdade - em dor ou riso - de ser musa.


 

 

 

William Blake, Death on a Pale Horse

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Eduardo Lacerda

 

 

14/11/2005