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Raymundo Silveira


 

O sentido da vida III


“Nascer, crescer, viver,
Pra quê?
Minha vida não tem finalidade,
Não tem sentido, é só futilidade
Sou um ser/não ser
Sem nenhuma utilidade”.
Assim falou o nihilista.


E os discípulos com ele concordaram
Mas vieram pândegos e contestaram:
“Por que falas assim, ó nihilista,
Não vês que a vida é feita para se gozar,
Beber, comer, foder, e descansar
Em companhia dos que riem?
‘Carpe Diem’.”


“Amigos,
A vida por aqui não vale nada
É uma passagem, é uma revoada,
Depois da morte vem o Paraíso,
Então vivamos só em função disso:
Jejuando, meditando, contemplando!”
Disse um velho místico.


“Qual o quê!
Viver é desfrutar a juventude
Só se vive enquanto há saúde
Sem elas a vida não tem nenhum sentido,
A velhice, portanto, é um castigo!”
Disse um jovem atrevido.


Um sábio ancião ouvira tudo,
Permanecendo todo tempo mudo;
Depois de refletir um pouco enfim falou:
“A vida tem finalidade, sim;
Quem diz que não, merece ter um fim
Imediato.
Pois além de louco e de insensato
É um eterno sofredor.
Tampouco se nasce para usufruir
Prazeres hedônicos e destruir
O próprio corpo.
Vivemos porque temos esperança,
Os mesmos ideais de uma criança
E acreditamos no porvir
Mesmo que o nosso fim seja amanhã.
Não importa fortuna ou juventude vã
Nem se neste mundo se tem sorte,
Ou que tudo se acabe após a morte.
Quem diz que a vida não tem nenhum sentido
Há muito já devia ter morrido
Porque a vida tem sentido, sim.
Mais do que isto, ela tem uma função:
A função de se viver é a CRIAÇÃO!
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Êxtase de São Francisco

 

 

 

 

 

Raymundo Silveira


 

Respiro letras...


Respiro letras,
Choro lágrimas de versos,
Diversos.
Sejam lágrimas de dor
Ou de alegria.
Meu alimento é um texto,
Em forma de prosa ou de poesia.
O "ar" que eu respiro
Nem sempre sou eu mesmo
Quem produz,
As "lágrimas" que derramo
(Aquelas que podem ser
De dor, ou de saudade;
De amor, de felicidade)
Geralmente são alheias
Mas também podem ser minhas.
O sangue que circula em minhas veias
De frases e de rimas ele foi feito.
Lindas sentenças, frases feias
Versos primorosos ou imperfeitos.
Sem lágrimas seria vã toda beleza,
Pois chorar é entoar uma canção
Composta - nos momentos de tristeza
Ou de prazer – no âmago do coração,
Em louvor à natureza.
Sem sangue, a vida é um desalento
Quer seja o nosso próprio ou transfundido.
Sem ele a vida nem existiria
Pois é o sangue que nos mantém unidos
(Pelo cordão umbilical da Poesia)
Ao universo,
Num passe mediúnico ou de magia.
Sem alimento, a vida se esvai
E o nosso corpo inane morreria.
Que venha, portanto, a refeição,
Seja o trivial ou a iguaria,
Da nossa ou de outras lavras.
Sem textos, sem frases, sem versos
Da vida eu me retiro.
Para criá-los, a matéria prima
É este bendito "ar" que eu respiro.
 

 

 

Bernini_Bacchanal_A_Faun_Teased_by_Children

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Nicolau Saião, 2003

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Venus with Organist and Cupid

 

 

 

 

 

Raymundo Silveira


 

A vida numa casca de noz


Nossos corpos são pedaços de estrelas
Embora ninguém perceba isto.
Quantos dos nossos ossos
Teriam sido formados por Andrômeda?
Quanto do nosso cérebro teria
Os mesmos átomos
Dos outros astros da Galáxia?


Quanto a mim,
Tenho na alma, concentrados,
(Qual uma estrela de nêutrons),
Todos os núcleos da tristeza.
Trago no peito sobressaltado
As cargas elétricas de um “quasar”,
A emitir radiações pulsáteis,
Amargas, angustiadas,
Somente perceptíveis
Pelo telescópio invisível da solidão.
Explosões de super-novas se sucedem
A cada momento que passa,
No meu coração ardente
De terror e de paixão.
Para povoar o meu futuro virtual
Há somente uma anã branca implodida;
E nenhuma réstia de luz
Escapou da atração gravitacional
Deste “buraco negro” que é a vida.
 

 

 

Albrecht Dürer, Mãos

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Ruy Espinheira Filho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

 

 

 

 

 

Raymundo Silveira


 

Compulsão


Produzo textos como um industrial
De fundo de quintal.
Sou um agente inflacionário da escrita,
Um gerador pletórico de letras:
Letras belas, letras feias, letras ilegíveis;
Produzo escritos como o mar, ressacas;
Crio frases como o sol a pino, calor;
Fabrico sentenças aceitáveis,
Algumas até mesmo agradáveis,
Mas também escrevo baboseiras
Como no “estro brutal das bebedeiras”,
Do qual falava em versos memoráveis
O gênio mal lembrado de Bandeira.
Às vezes escrevo coercivamente
Sobre a fala “non sense” dos idiotas
A linguagem ininteligível dos loucos,
A idéia fixa dos obsessivo-compulsivos,
A luxúria promíscua dos lascivos,
As aberrações chocantes dos tarados,
O lugar comum dos imbecis,
E o desespero dos desesperados.
Para mim pouco importa o que ajunto:
Na coerência, na gramática ou no assunto,
Contanto que a fábrica nunca pare
De produzir palavras, letras, frases
Porque sempre foi este o meu destino
E só me decidi a isto um tanto tarde,
Embora o pressentisse desde menino.
 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

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Rodrigo Petronio [2003]

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

 

 

 

 

 

Raymundo Silveira


 

A única saída


Homens de cinqüenta,
Mulheres de cinqüenta!
O que quereis mais da vida?
Pois não foi suficiente
A vossa infância inocente?
A adolescência atrevida?
A juventude inconseqüente,
A maturidade mal vivida?


Homens de cinqüenta,
Mulheres de cinqüenta!
O que ainda esperais
Da crise da meia idade:
Volúpia, felicidade?
Amores, paixões banais ?
Quereis luxos, quereis mais
Prazeres materiais?


Homens de cinqüenta,
Mulheres de cinqüenta!
Por que vos preocupais
Com o que não volta jamais
A não ser de Poe, o Corvo
A ferir vossos umbrais,
A vos causar tanto estorvo,
E cujo nome é “Nunca Mais”?


Homens de cinqüenta,
Mulheres de cinqüenta!
A esperança foi embora
Só vos restou nesta hora
Uma ilusão passageira,
Uma saudade matreira,
Uma canção bem tristonha,
E uma solidão medonha!


Homens de cinqüenta,
Mulheres de cinqüenta!
Só vos resta uma saída
Se inda quereis nesta vida
Justificar vossa missão:
É uma “criança” perfeita
A única que não vos rejeita:
Seu nome é “Criação”!
 

 

 

John William Waterhouse , 1849-1917 -The Lady of Shalott

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Carlos Gildermar Pontes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Maja Desnuda

 

 

 

 

 

Raymundo Silveira


 

Tempos do verbo amar


Ó tu que falas tanto de amor e de paixão,
Que dizes adorar tua mulher,
Por causa dela darias tua vida
E nunca cansas de chamá-la de querida.


Ó tu cujo desejo louco não controlas
E pensas e sonhas o tempo inteiro
Com esta bela criatura, com esta fada,
A quem chamas “minha linda namorada”.


Ó tu que julgas sempre impossível
Viver sem a deusa do amor que te seduz
E para quem juras em nome de Jesus,
Que nunca, nunca irás abandoná-la.


Ó tu que dizes todo tempo: “Não suporto
Viver sem esta paixão que me alucina;
Que me cega, me maltrata, me fascina”,
Responde-me sinceramente:


E se amanhã ela sofresse um acidente
E um membro tivesse que amputar;
Se fosse desfigurada de repente
E sumisse aquele brilho em seu olhar?


Se uma manhã ao levantar da cama
Ela se visse com um câncer de mama
E uma delas tivesse que operar
Sendo imperioso mutilar?


E se acaso lhe “surtasse” uma loucura,
Tão repentinamente como um raio
E a ti ela fizesse de lacaio,
Te injuriasse, e se tornasse uma tortura?


Será que o teu amor seria igual,
Farias para ela com o teu pinho
Uma seresta de ternura e de carinho?
Ou então lhe dirias simplesmente,


Sem esconder na voz o tom brutal,
Sem o menor remorso, mas com um riso
Cínico: “Amor, desculpa, mas preciso
Ir embora. Já vou indo: tchau”?
 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), João Batista

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Paulo de Tarso Pardal

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Judgment of Solomon

 

 

 

 

 

Raymundo Silveira


 

Mãe


“Mãe, eu sou assim porque nunca exististe,
E eu não sei sequer o que ou quem tu és ou foste;
Mãe, a tua imagem para mim é mais cruel
Do que se tu não tivesses sido, pois foi incorporada
Por mim, como fonte de angústia e frustração!
Mãe, eu não sei quem foste; se quando moça
Sonhaste; que experiências viveste.
Só sei que de ti carrego traços
Mas nunca, nunca num abraço,
Pudemos um do outro o amor entender.
Mãe, esta sensação de abandono me apavora;
As minhas emoções são difusas e diferentes
Das emoções de outras pessoas;
Minha afetividade é indefinida:
É o resultado de um conflito sem saída
Por que até hoje eu nunca conheci
O significado da palavra ‘amor’.
Mãe, eu jamais soube também o que é esperança:
O desespero sempre foi meu companheiro,
E a angústia, meu estado mais normal.
Mãe, eu menti: Eu tenho sim uma ‘esperança’:
Que sobre para mim um lugar
Pelo menos no inferno!”
 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), Angels Rolling Away the Stone from the Sepulchre

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Nelson Ascher

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Venus Presenting  Arms to Aeneas

 

 

 

 

 

Raymundo Silveira


 

Paradoxo


Quanto do que esperaste no Ano Novo,
De fato, já se concretizou até agora?
Não te recordas sequer o que almejavas!
Hoje todos nós somos diferentes
Daquilo que éramos ontem.


Quanto já se consumou
Daquilo com que sonhavas
Quando tinhas vinte anos?
Dez por cento? Cinco? Dois?
Um, se tanto. Talvez nem isto!


Do que te lembras mais
Quando tinhas doze anos?
Como eras, o que sentias,
A quem amaste? Não os nomes, mas
Aquilo que idealizavas em teus amores?


Desejarias voltar à tua infância,
Exatamente como eras naquele tempo?
“Certamente que sim”, deves dizer
Mas, acaso saberás o que isto significaria?
Nada além de um “hoje” mais remoto!


“Que amor que sonhos que flores?”
E as enterites e as dores?
“Como são belos os dias
Do despontar da existência!”
E dos adultos a inclemência?


Nada do que fomos sobreviveu
Entretanto, de tudo temos saudade!
Porque apesar do que o destino
Nos preparou (não importa a idade),
Somos nada mais que aquele menino!
 

 

 

Da Vinci, Madona Litta_detalhe.jpg

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Edna Menezes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Rebecca at the Well

 

 

 

 

 

Raymundo Silveira


 

Aproveite o passado


Pára, amigo! Pára e reflete:
Para quê esta maldita questão que não resolves,
Esta eterna competição em que te envolves
Todo dia?


Pára amigo! Pára e medita:
Por que esta sofreguidão pra amealhar,
Por que esta sede insaciável de ganhar
Cada vez mais?


Pára, amigo! Pára e pondera:
Já mediste a pressão arterial,
Já mandaste fazer toque retal
Pelo menos a cada ano?


Pára amigo! Pára e me escuta:
Em quanto está o teu colesterol,
O PSA prostático, o glicerol,
Já os dosaste alguma vez?


Pára amigo! Pára e cogita:
Onde estarás daqui a mais dez anos?
Pois então que sejam trinta anos...
Já paraste pra pensar?


Escuta companheiro:
Para que acumular tanto dinheiro,
Por que te matas tanto pra ganhar,
Se não tens onde gastar?


Percebe irmão:
Esta vida é uma queda sem piedade
Que se acelera, como a gravidade,
Sempre mais e mais!


Escuta “cara”:
Quem te falou em presente está errado
Vê que tudo o que falei já é passado;
Aproveita-o, portanto!
 

 

 

Soares Feitosa, dez anos

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Rodrigo Garcia Lopes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Nurture of Bacchus

 

 

 

 

 

Raymundo Silveira


 

Matéria prima


Matéria prima de cadáveres
É tudo aquilo que somos;
Adubo, esterco, estrume
Será o nosso destino,
Poeira da terra já fomos.
Mas não haverá meio termo
Este corpo que zelamos,
Com tanta estima e vaidade
Dos tapurus e dos vermes
Breve o alimento será
Do mesmo modo que hoje
Eles são nosso jantar
Na carne que ingerimos.


Este é o banquete da vida:
Comer e servir de comida
É o destino de quem nasce.
É lei da qual ninguém foge.
Pra ela não há “jeitinho”
Prestígio, posse, padrinho,
Beleza, inteligência,
Poder, riqueza ou sabença.
Cada pessoa vaidosa
Deveria freqüentar
Um morgue, uma vez na vida.
A fim de ver, sentir, cheirar
Os nefandos restos da morte.


Parece lugar comum
Estar a falar destas coisas;
Seria mais que um clichê
Se esta não fosse a sina
De cada um de nós outros
Pois a vida é o único lugar
De onde sairemos sem ela.
Quanto tempo faltará?
Um ano, cem? Não importa,
Nem é nada absoluto
Como um poema sem rima:
Pois o defunto é o produto
Somos só matéria prima.
 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922),  A Classical Beauty

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Secchin