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Waldemar Lopes


 

Soneto da casa morta


Rubra, a data sangrando no vazio
da casa morta, sonho prisioneiro,
e eco do tempo longe o vozerio
das cirandas em flor, quando o primeiro

sangue do luar cavava o seu macio
poço. (Depois, o triste companheiro
das sombras ia amar a noite e o rio,
e a leve brisa abria no canteiro

papoulas encarnadas.) As perdidas
bandeiras reflorindo naus de ausência
nessas rotas de cinza consumidas.

Na casa morta, vozes não ouvidas:
luz do silêncio, música da essência
de coisas mais sonhadas que vividas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

 

Waldemar Lopes


 

Soneto da insônia


Na emanação da noite o leve peso
das sombras ancestrais. Vozes tardias
em vago marulhar, talvez desprezo
às turvas ambições, seiva dos dias.

E sobre o ser profundo, vivo-aceso,
o lume das vigílias. (Nas sombrias
urnas do tempo há de ficar defeso
o enigma das mortais mitologias

imunes à esperança.) Agora é essa
onipresença onírica, ou apenas
a ácida indiferença à vã promessa:

em seu ambíguo reino indefinido
a consciência noturna sofre as penas
da vida, o rude esforço sem sentido.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Three Ages

 

Waldemar Lopes


 

Soneto do exílio


Mais além, leve e alada, a imaginária
arquitetura irreal, sombra a crescer
sobre a terra dos mortos, solitária.
Na falsa noite não deixou de ser

ouvida a melodia perdulária.
Se acaso o húmus da vida fez nascer
luz esquiva na angústia milenária,
é chegado o momento de esquecer

as obscuras heranças desvividas
por desamor e amor: frágil reinado
em manhãs de magia, pressentidas

além de tempo e espaço. (E, roto o manto,
na torre enoitecida um exilado
rei de si mesmo. Que lhe resta? O canto.)


(De Sonetos do Tempo Perdido.)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Judgment of Solomon

 

Waldemar Lopes


 

Soneto de janeiro


Os cânticos, as vozes, a memória
do futuro. No efêmero da aliança
entre o amanhã e o agora se relança a
frágil rede de equívocos. A glória,

o amor, o tédio, a ira, a insegurança:
ó matéria do ser, breve e incorpórea!
Nas almas fustigadas de esperança
a atônita alegria, transitória

dádiva do mistério: ínfimo instante =
sopro de eternidade no ar perplexo.
Sobre os doze degraus do calendário

urde-se a trama: côncavo/convexo
é o caminho de espelhos, posto diante
do homem, para o imprevisto itinerário.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

 

Waldemar Lopes


 

Soneto dos símbolos efêmeros


Os símbolos efêmeros: memento
da vida breve: música secreta
– do tempo, a se esvair na asa do vento,
– do sonho, a esmaecer a chama inquieta.

Cresça no céu de pedra o véu nevoento;
junto às nuvens se perca a doida seta
rumo ao não e ao talvez: o sentimento
atrela-se a uma estrela, e essa incompleta

visão apaziguante é misteriosa
luz transcendência: rútila persiste,
seiva do ser, essência poderosa,

pois se foi dito o quanto a carne é triste,
arde em perfume o espírito da rosa
e é mais belo o que só no sonho existe.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

 

Waldemar Lopes


 

Soneto da contemplação


Claro espasmo de ritmos e de cores.
Branco esplendor da força, desatada
nos cânticos, nos prantos, nos clamores
da imensa arquitetura instável. Cada

síntese dos abismos são rumores
de líquido tropel. Desordenada,
a memória das águas: estertores
escachoantes na terra violentada.

A consciência do ser tímida e atônita
no pânico suicida, pobre presa
de íntima pequenez, mágoa recôndita.

De súbito, a emoção do êxtase alado:
paira/pairando, a límpida beleza
do vôo azul de um pássaro calado.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Judgment of Solomon

Waldemar Lopes


 

Soneto das imagens interiores


Mistério das imagens interiores.
Imersas nestes mares de abandono
as sementes de fogo geram flores:
rosas de pó nas lâminas do outono.

Transfigurada, a fria luz de sono
vela de cinza a face dos pastores,
e os súditos do tempo, e os reis sem trono,
sob o mudo legado de outras dores.

Na áspera latitude um rio corre
branco de eternidade. As nebulosas
vão-se formando, enquanto o sonho morre.

Há pássaros absortos na obcecada
cisma da solidão; e mãos ansiosas
abrem portas de sombra para o nada.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Memories, detail

Waldemar Lopes


 

Soneto da noite branca


No insólito do azul é melodia
a paz dos claros céus. Lua madura
modela imagens sobre a serrania,
e flui o tempo em lírica doçura

nas almas e nos sonhos. Noite pura
de silêncio esplendor, magma do dia.
(Antes que no torpor da angústia escura
brilhe a estrela da morte em fronte fria,

o tumulto das ânsias se asserena
e o coração aquieta a face nua,
pois, se pensa, também está sentindo;

é que não há, Pessoa, alma pequena
sob a noite solar: carne de lua
transluminosamente azuluzindo.)


(De Pássaros da Noite.)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravaggio, Tentação de São Tomé, detalhe

 

Waldemar Lopes


 

Flor de cimento e sol


Sobre o vazio imenso a flâmula da Idéia
fulgia, estrela ideal, na amplidão do Planalto.
Ao mundo mineral, em sopro de epopéia,
tinham cortado, outrora, o pasmo e o sobressalto

das Bandeiras viris. Cantava no mais alto
dos verdes buritis a mansa melopéia
da brisa. Mas um dia a afanosa colméia
de candangos por fim daria o grande salto

na seqüência do tempo; e à cobiça forânea
– flor de cimento e sol, ou mais: contemporânea
do futuro – se opôs a Cidade sonhada

como Lúcio a compôs e a previra o profeta:
destino e doação, sonho tornado meta,
luz-síntese a indicar o rumo da escalada.


(De Sonetos da Despedida.)

 

 

 

 

 

 

01.12.2006