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Luiz Bello


 

Corsário


Canarinho das palmeiras,
Peito amarelo galante,
Vida de corsário errante,
Eis que pássaro de bando
É como índio de corso,
Resistente, combativo.
Chega em algazarra festiva,
Pousa na cerca de arame,
Olhando em volta, apressado.
Anda em busca de um tesouro,
Que pode ser um destino,
Ou quem sabe uma esperança,
Talvez uma canarinha
Que voe ao lado no bando,
E pouse ao lado na cerca,
Ambos planejando um ninho,
Que os corsários também sonham.
Olha de novo apressado,
Mas já não encontra ninguém.
O bando fugiu do gato
( Ou foi ele quem fugiu? ),
Das baladeiras de caça.
Só ele ficou parado,
Olhando em volta, apressado.
Muda de pouso, esvoaça,
Sente os pingos da garoa,
Pousa no capim, balança,
Alça, trina, cospe e voa.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), Girl, detail

Luiz Bello



Um nome


Plantei um nome entre as sementes raras
Que germinam na seiva do meu canto
E tu nasceste, como nascem as rosas,
Já sabendo quem são e a quem destinam

A ventura de amá-las e colhê-las.
Aspirei os odores que anunciam
O destino de amores que amanhecem
Na alegria das pétalas que se abrem.

Falei teu nome quase num murmúrio
E a brisa o trouxe, muito suavemente,
Como um segredo apenas revelado,

De volta ao sonhador que o semeara
Na esperança de um dia receber
Tudo o que não me dás, mas eu mereço.
 

   

 

Maura Barros de Carvalhos, Tentativa de retrato da alma do poeta

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Mauro Mendes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion, detail

Luiz Bello


 

Palavras


A verdade sempre chega
Descarada, crua, nua,
Desmascarando mentiras,
Desmoralizando crenças,
Opressiva, esmagadora,
Propícia, transformadora,
Implacável, insensível
À inquietação que semeia
Entre os justos que a procuram
E os injustos que a deploram
Maldizendo a pertinência
Das frases reveladoras
E a energia luminosa
Das palavras escolhidas,
Dos atos mais convincentes
E o poder demolidor
Da autoridade contida
E entesourada num feixe
De palavras reluzentes.
 

   

 

Michelangelo, Pietá

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José Alcides Pinto

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Morte de César, detalhe

Luiz Bello



O bom-bocado


Os poetas não são santos
Nem jograis da burguesia.
Nem miragem hölderlinista,
Nem lugar-comum marxista.

Num esboço resumido
Seu perfil é conhecido.

Seus cantos têm harmonia,
Seu estro tem sintonia,
Sua inspiração é lírica,
Sua vibração onírica.
Suas vozes, pessoais,
Seus poemas, musicais.

Os poetas não são gente.
São seres imaginários,
Duendes, dignatários
No empíreo da própria mente.

Homeros, Dantes, Virgílios,
Patativas do Assaré,
São todos irmãos em arte,
Criadores de protótipos,
Modelos, estereótipos
Como Circe, como Ulises,
Personagens que se vê
Nas ruas, por toda parte,
Como Pedro Malazarte,
Como o Sacy Pererê.

Nos teares que fornecem
Os temas consagradores,
Eles não fiam, só tecem.
São decodificadores.

São equestres, são alados,
Centauros criptográficos
Cada qual com seu segredo,
Galopando nos milênios,
Percorrendo os hemisférios,
Pesquisando seus mistérios.

Querem antecipar os planos
Da sopa de aminoácidos
Que dizem ser nossa origem,
Da chaminé sem fuligem,
Sonho de Papai Noel,
Do néctar do Zodíaco,
Poeira cósmica e mel.

Querem desvendar os códigos
Da Inteligência Anterior
Que programou nossa vida
E os passos da humanidade
No rumo da Eternidade.

Contemplam, mostram, anunciam,
Repreendem, denunciam,
Consomem toda a existência
Configurando sua arte,
Seu esforço criador.
Não raro, falam de amor.

E ao fim e ao cabo seus críticos,
Eruditos, analíticos,
Concedem que sua obra
Tem consistência de sobra,
Tem forma, tem substância,
Merecendo um veredito
Favorável, mas restrito.

Eis que a comunicação
Não é ativa, é passiva,
Não está em quem transmite,
Mas sim em quem a recebe.

Logo, os versos, são do autor,
Mas a alma do poema,
A poesia em si mesma,
Esta pertence ao leitor.

O bom-bocado não é
Feito para quem o faz.
O bom-bocado, sim, é
Feito para quem o come.
 

   

 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), girl

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Weydson Barros Leal

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), A Classical Beauty

Luiz Bello



Mulheres


Quantas viagens para compreendê-las
Quantos caminhos, quantas escaladas
E quanta recompensa em merecê-las!
Só elas têm a chave do tesouro

Onde se abrigam as jóias desta vida,
Mãos de veludo para fazer carícias,
Faces alegres para transmitir
A bênção do sorriso luminoso

Que a todos serve o néctar da certeza
Ou põe um gosto amargo em cada dúvida.
Na cálida aventura de querê-las,

Só ela têm a fórmula política
Que elegeu patricar deste mundo
O amor que está brilhando nas estrelas.
 

   

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Antigona

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Roberto Pires

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Memories, detail

Luiz Bello



Inocência


Cedo aprendi lições de obstetrícia:
Eu chegara a este mundo normalmente,
Como um óvulo fértil entre muitos
Plantados por meu pai na minha mãe.

Sou moderna, sou viva, sou vivida,
Não afeto pureza ou castidade,
Sei tudo sobre Aids e as temíveis
Doenças Sexualmente Transmissiveis.

Mas como sou também sentimental
E detesto transar com camisinha,
Às vezes penso que melhor seria

Vir ao mundo no bico da cegonha
Como nos tempos em que geralmente
Mocinhas como eu eram inocentes
 

   

 

John William Godward (British, 1861-1922),  A Classical Beauty

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Lilian Mail

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Antigona,detail

Luiz Bello



Açúcar queimado


Olhou para o espelho
Com as lâmpadas acesas
E sentiu que perdera o desejo antigo
De ver claro através de si mesma.

Que diferença fazia, afinal,
Saber quem era?
Ou quem não era?

Também já não lhe interessava saber
Se era o seu espírito que agia sobre seu corpo,
Ou o contrário,
Como chegara a temer.

Afastou-se do espelho
E seu olhar encontrou
O olhar do homem sorridente,
Deitado em sua cama.

Brotou em seu coração uma clareza
Quente e doce,
Como açúcar queimado.

Compreendeu que a força de uma alma
Está nos momentos de ventura
Que se vive,
Como o brilho de aceitação
No olhar de quem se ama.
 

   

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Mignon Pensive

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Rodrigo Marques, ago/2003

 

 

 

 

 

 

 

 

Andreas Achenbach, Germany (1815 - 1910), A Fishing Boat

Luiz Bello



Implacável


Tranqüilo amor, antigo e respeitável,
Grisalho como as têmporas de agora,
Mas vivo como os ímpetos de outrora,
Rescaldo de um incêndio interminável.

Já podemos beijar as cicatrizes
Dos tempos em que éramos culpados,
Pela própria consciência indiciados
E a despeito de tudo mais felizes

Do que somos agora, na velhice,
Rememorando tudo o que se disse
E tudo o que se errou na mocidade.

Sagrado amor, de paz na consciência,
Mas amargando o fel da dupla ausência
E o implacável martírio da saudade.
 

   

 

Rafael, Escola de Atenas, detalhes

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Ricardo Alfaya

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

Luiz Bello



Os amores que quero (e os que não quero)


Não quero mais saber se vais cumprir
Ou renegar,
As promessas que leio em teu olhar.

Também não quero mais compreender
Ou desvendar,
Os segredos que moram em teus silêncios.

Sei que há verbos de amor que conjugamos
Ou calamos
E bravuras de amor que não ousamos.

Mas sei também que o amor pede firmeza
E clareza
Em todos os tempos e modos que conjuga.

Não quero mais o amor de compromisso
Tão omisso
Nas liberdades que sempre anuncia.

Também não quero o amor instituído
Do marido,
Vítima inerme da monogamis.

Eu quero o amor sinfônico dos grilos,
Que mobilizam orquestras estridentes
Para encantar e amar suas nubentes.

Quero o amor triunfal dos pirilampos
Que iluminam o seu mundo e suas vidas,
Para atrair as suas preferidas.

Eu quero o amor trivial dos namorados
Liberto ou não, secreto, proibido,
Talvez proscrito ou amaldiçoado
Pelas forças que regem, ou que oprimem
As travessuras líricas do homem.

Eu quero amar, como a palavra indica,
Com a mais completa naturalidade.
Eu quero, enfim, viver, inteiramente,
Aquilo que o amor significa.
 

   

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion

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Thiago de Mello

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

Luiz Bello



Confissão
(A Leila Miccolis)


Ansioso e submisso,
Feito as mulheres,
Molhado e umedecido
Depois de ensaboado
E ainda perfumado,
Se assim preferes,
Tudo como gostas,
Tudo como queres,
Do teu ou do meu jeito,
No teu ou no meu leito,
Quero ser teu homem,
Quando quiseres.
 

   

 

Caravagio, Extase de São Francisco

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José Peixoto Jr

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Êxtase de São Francisco

Luiz Bello



O amor "naquela" idade
A Paulo Franchetti


O amor "naquela" idade
É uma pilhéria divina,
Confirmando o ensinamento
Do teólogo Chico Buarque:
"Deus é um cara gozador,
Adora brincadeira".
ELE serve o sal,
Depois esconde a água
E fica rindo da sede insaciável.
O mundo inteiro acha graça
Do amor "naquela" idade,
Humorismo de Deus Nosso Senhor.
 

   

 

Henry J. Hudson, Neaera Reading a Letter From Catallus

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Paulo Franchetti, 2003

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

Luiz Bello



A água que pensa
(A Manuel Del Cabral)


A água que pensa
Escorre pelo rosto,
Vive o seu momento de cascata
E deságua no mar das emoções.

Não é como as outras águas
Facilmente acondicionáveis
Na fórmula H2O.

É uma solução aquosa,
Levemente alcalina,
Própria para umedecer
As caatingas da alma.

Em que pensa essa água,
Fluente e racional?

Nas coisas que pensam
Todos os que choram
E nas coisas que choram
Todos os que pensam.
Racionais ou não.

Como o boi,
Que soluça sobre o sangue
Dos bovinos imolados
No altar das proteínas.

Como o gato que chora
Sobre a gata
Subjugada no coito escandaloso.

Essa água só é usada
Pelos sofredores,
Pelos felizardos,
Pelos que sabem que quem não chora não mama

E pelos governos genocidas
Que há muito já a elegeram
Condição indispensável ao êxito
Dos seus projetos de extermínio.
 

   

 

Alexander Ivanov. Priam Asking Achilles to Return Hector's Body

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Francisco Brennand