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Leila Míccolis


 

Engorda


Ilusões para os aflitos,
para a mulher, segurança,
para a casa, samambaias;
consolo para os doentes,
conselhos aos desgarrados,
aos leitos de amor, cambraias.
Sorvetes para as crianças,
esmolas para os famintos,
para os turistas, as praias,
para os homens futebol,
televisão para todos
e alface para as cobaias.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Antonia Zarate, detalhe

 

 

 

 

 

Leila Míccolis


 

Descrédito


Se me perguntam:
— Escrever pra TV, rende?",
respondo: "Depende
dos créditos",
— aquelas letrinhas em que aparecem
o nome da gente
no começo ou no final,
dependendo do canal.
A gente briga pra tê-los,
pra vê-los nas novelas, seriados
e acaba pirado
porque escritor não tem crédito
nem em Banco,
já que o saldo é meio manco
e ninguém credita nada.
Ê profissãozinha desacreditada...

 

 

 

Albrecht Dürer, Mãos

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Erorci Santana

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

 

 

 

 

 

Leila Míccolis


 

Horário Comercial


As mães do meu edifício
falam assim com seus filhos:
—"Cuidado pra não cair...
Se sujar a roupa nova
eu vou lhe dar uma sova".
Tem outra espécie, também,
que sempre se sobressai,
a que ameaça terrível:
— "Eu vou contar pro seu pai"...
Por fim, eu ouço a que diz:
— Ah, meu Deus, que mal eu fiz
pra ter tido este estrupício?"
Eu então, ouvindo isso,
me arrisco a uma conclusão
sem brilho e bem pessoal:
mãe sorrindo para os filhos,
só na televisão
em algum comercial...

 

 

 

A menina afegã, de Steve McCurry

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Aníbal Beça

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba

 

 

 

 

 

Leila Míccolis


 

Tentativa de Suicídio


Foi ao toalete
e cortou os sonhos,

à gilete.


 

 

 

Culpa

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Lau Siqueira

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

 

 

 

 

 

Leila Míccolis


 

Missão C(o)mprida


Você conseguiu tudo na vida:
uma barriga bem alimentada,
uma amante infiel
uma esposa comportada
carro do ano
filhos rebeldes ao seu julgo tirano
casa própria, emprego com crachá
um sítio em Visconde de Mauá
um ufanista amor pelo país
tudo como manda o figurino
(de Paris).
E morrerá, cumprindo a sua parte,
de tensão ou de enfarte,
de repente,
sem nem ao menos de longe perceber
que podia ter sido diferente.

 

 

 

Bernini_The_Rape_of_Proserpina_detail

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Luiz Bello

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Venus with Organist and Cupid

 

 

 

 

 

Leila Míccolis


 

Vozes D'Ásia
(Paráfase)


Minhas irmãs são belas, são ditosas...
Dorme a Ásia nas ombras voluptuosas
Dos haréns do Sultão,
Ou no dorso dos brancos elefantes
Embala-se coberta de brilhantes
Nas plagas do Indostãoª.
Castro Alves, in "Vozes D'África"

"Deus, ó Deus", Senhor meu, por "onde estás
que não respondes?" Quando cessarás
com tais convulsas guerras?
Se és de luta, fabrica nova lança,
e se és de paz, renova outra esperança
a todas minhas terras...

Tu que ouviste de um povo a voz aflita,
que deste fim à dor e à vil desdita
dos mais cruéis momentos,
arrasa com trovão as velhas rochas,
acende por fanal melhores tochas
que desafiem ventos...

Tu que entendeste apelos condoídos
d'África irmã, em prantos incontidos,
não acredites nela
que não sabia que eu era infeliz,
que me invejava porque nunca fiz
tanto alarde tal qual ela.

Pensava que eu vivesse em "elefantes,
cobertas por haréns e por brilhantes
nas plagas do Hindustão",
repleta de "corais, beijando a praia
o Ganges amoroso, e o Himalaia"
a servir de brasão...

No entanto, a peste assola minha pele,
corrói-me a praga, a trégua me repele,
chamuscam-me os dois seios.
Herdeira de Hiroshima e Nagasaki
sou arrasada por constantes ataques
dos grandes bombardeios...

Por momentos de dor: Vietnã,
a Coréia, famélica e pagã
onde se come ratos.
E Tu vês estas torpes violências
os arbítrios e as doces indulgências
dos ilusórios atos.

Sou a Ásia, Senhor, avelhantada,
invadida, faminta e violada
num grande sacrifício,
enquanto lá de longe vês impávido
morrer de tempos bons meu solo ávido
à espera do armistício.

..........................................................
A completar horrenda maldição
a China cresce e crescem, na expansão,
antigos terremotos,
confirmando as estranhas profecias,
seculares, sangrentas e sombiras,
dos malfadados votos.

Forja-se assim, de modo bem mais forte,
séculos ruins de angústia, dor e morte
nesta humana oficina;
segue o desânimo (que nada o vence),
ao qual também, histórica, pertence
a triste Palestina.

Cansaço é longo e enorme esta disputa,
que homens mudaram numa prostituta
eivada de injustiças.
Dei-lhes riquezas, que desperdiçaram;
e minha entranha mais dilaceraram —
na imunda e vã cobiça.

Que a África pior de escravidões,
trago em meu corpo muito mais grilhões:
— um revolto arsenal —
napalmes, bombas, astros estelares,
irradiações fetais e nucleares
no estertor final.

Levanta a clava, vinga os sofrimentos,
devolve a todos nossos bons momentos
do divinal Nirvana,
e vem salvar a Humanidade torta,
eis que do Inferno Demo abriu a porta
da cidadel profana...

............................................................
Sou fácil presa, sempre a favorita
desta doença rápida e maldita
tratada por venérea,
dos tempos ímpios da carnificina,
do humano rito da plural chacina,
traidora e funérea.

.............................................................
Eu tinha outrora histórias a narrar,
ricas de sonhos, gênios, Xarriar,
da doce Scheherazade...
Eu namorava muito tempo o sol
e me voltava qual um girassol
aberto à mocidade.

Eu era o berço de religiões,
de raças livres, de outras direções
do poder criador.
E sensual, o mundo todo olhava,
pois, por missão, eu mística dançava
nas Caabas do Amor.

Tufões, porém, varreram meus países,
o sal da fome me roubou raízes...
Assim, eu tornei
— apodrecido, estéril, tronco velho —
aquilo que — Tu vês — nem bem espelho:
o que jamais gerei.

Que aconteceu, Senhor, com minha gente?
Por que sofrer o que outro Continente
nunca, jamais sofreu?
O que Te fiz, o quê, Divino Amigo,
pra ter-Te a ira e tão servil castigo?
E por que logo eu?

Plano infernal, sinistro, diabólico
abriu-me a caixa de Pandora e, eólicos,
os ventos maus rugiram,
longe levando as mais propícias eras
e destruindo as céleres galeras
que as velhas crenças viram...

...........................................................
Por dois milênios África bradou
e bradar dois mil anos mais eu vou
por Tua piedade,
que há outras mais Camboja, Laos, com fome,
com guerras, grito e sede do teu nome,
meu Senhor — Liberdade!

 

 

 

Bernini, Apollo and Dafne, detail

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Francisco Brennand

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Plaza de toros

 

 

 

 

 

Leila Míccolis


 

Atirador de Facas


Arrancar as vendas
e acompanhar,
de olhos abertos,
a trajetória do punhal,
cravado em nosso corpo, em nosso peito,
a cada amor desfeito.

 

 

 

Bernini_Bacchanal_A_Faun_Teased_by_Children

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Paulo Bomfim

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Three Ages

 

 

 

 

 

Leila Míccolis


 

Separação


Não houve culpados.
Só feridos.


 

 

 

Rubens_Peter_Paul_Head_and_right_hand_of_a_woman

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Ivan, 2003

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

 

 

 

 

 

Leila Míccolis


 

Ruble Fish


Às vezes
a gente vive o impossível:
como acalentar
esta vontade incrível de amar,
a revelia
desse tempo mais difícil a cada dia.

 

 

 

Ticiano, Magdalena

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Nei Duclós

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Êxtase de São Francisco

 

 

 

 

 

Leila Míccolis


 

Novo Amor


Meu coração nunca pára
pra comparar, solta amarras,
vive seu tempo presente:
se ferido, em mim se ampara;
mas quando sara e se sente
contente, fica eloqüente,
feito algazarra de araras.

 

 

 

Psi, a penúltima

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Jorge Tufic