Leila Míccolis
Vozes D'Ásia
(Paráfase)
Minhas irmãs são belas, são ditosas...
Dorme a Ásia nas ombras voluptuosas
Dos haréns do Sultão,
Ou no dorso dos brancos elefantes
Embala-se coberta de brilhantes
Nas plagas do Indostãoª.
Castro Alves, in "Vozes D'África"
"Deus, ó Deus", Senhor meu, por "onde estás
que não respondes?" Quando cessarás
com tais convulsas guerras?
Se és de luta, fabrica nova lança,
e se és de paz, renova outra esperança
a todas minhas terras...
Tu que ouviste de um povo a voz aflita,
que deste fim à dor e à vil desdita
dos mais cruéis momentos,
arrasa com trovão as velhas rochas,
acende por fanal melhores tochas
que desafiem ventos...
Tu que entendeste apelos condoídos
d'África irmã, em prantos incontidos,
não acredites nela
que não sabia que eu era infeliz,
que me invejava porque nunca fiz
tanto alarde tal qual ela.
Pensava que eu vivesse em "elefantes,
cobertas por haréns e por brilhantes
nas plagas do Hindustão",
repleta de "corais, beijando a praia
o Ganges amoroso, e o Himalaia"
a servir de brasão...
No entanto, a peste assola minha pele,
corrói-me a praga, a trégua me repele,
chamuscam-me os dois seios.
Herdeira de Hiroshima e Nagasaki
sou arrasada por constantes ataques
dos grandes bombardeios...
Por momentos de dor: Vietnã,
a Coréia, famélica e pagã
onde se come ratos.
E Tu vês estas torpes violências
os arbítrios e as doces indulgências
dos ilusórios atos.
Sou a Ásia, Senhor, avelhantada,
invadida, faminta e violada
num grande sacrifício,
enquanto lá de longe vês impávido
morrer de tempos bons meu solo ávido
à espera do armistício.
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A completar horrenda maldição
a China cresce e crescem, na expansão,
antigos terremotos,
confirmando as estranhas profecias,
seculares, sangrentas e sombiras,
dos malfadados votos.
Forja-se assim, de modo bem mais forte,
séculos ruins de angústia, dor e morte
nesta humana oficina;
segue o desânimo (que nada o vence),
ao qual também, histórica, pertence
a triste Palestina.
Cansaço é longo e enorme esta disputa,
que homens mudaram numa prostituta
eivada de injustiças.
Dei-lhes riquezas, que desperdiçaram;
e minha entranha mais dilaceraram —
na imunda e vã cobiça.
Que a África pior de escravidões,
trago em meu corpo muito mais grilhões:
— um revolto arsenal —
napalmes, bombas, astros estelares,
irradiações fetais e nucleares
no estertor final.
Levanta a clava, vinga os sofrimentos,
devolve a todos nossos bons momentos
do divinal Nirvana,
e vem salvar a Humanidade torta,
eis que do Inferno Demo abriu a porta
da cidadel profana...
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Sou fácil presa, sempre a favorita
desta doença rápida e maldita
tratada por venérea,
dos tempos ímpios da carnificina,
do humano rito da plural chacina,
traidora e funérea.
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Eu tinha outrora histórias a narrar,
ricas de sonhos, gênios, Xarriar,
da doce Scheherazade...
Eu namorava muito tempo o sol
e me voltava qual um girassol
aberto à mocidade.
Eu era o berço de religiões,
de raças livres, de outras direções
do poder criador.
E sensual, o mundo todo olhava,
pois, por missão, eu mística dançava
nas Caabas do Amor.
Tufões, porém, varreram meus países,
o sal da fome me roubou raízes...
Assim, eu tornei
— apodrecido, estéril, tronco velho —
aquilo que — Tu vês — nem bem espelho:
o que jamais gerei.
Que aconteceu, Senhor, com minha gente?
Por que sofrer o que outro Continente
nunca, jamais sofreu?
O que Te fiz, o quê, Divino Amigo,
pra ter-Te a ira e tão servil castigo?
E por que logo eu?
Plano infernal, sinistro, diabólico
abriu-me a caixa de Pandora e, eólicos,
os ventos maus rugiram,
longe levando as mais propícias eras
e destruindo as céleres galeras
que as velhas crenças viram...
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Por dois milênios África bradou
e bradar dois mil anos mais eu vou
por Tua piedade,
que há outras mais Camboja, Laos, com fome,
com guerras, grito e sede do teu nome,
meu Senhor — Liberdade!
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