Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

Mário Hélio 

Entardecer, foto de Marcus Prado

   

 

 

 


Segundo grito:
Longitude morta

 

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Henry J. Hudson, Neaera Reading a Letter From Catallus

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Cleópatra ante César

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Judgment of Solomon

 

 

 

 

 

Mário Hélio


 

I (Formas)


vou deixar de fazer poema
para as estrelas.
hei de cantar as formas duras e abscônditas,
as formas brutas,
a fome e o desespero tão irmãos,
as pequeninas mortes, o imodelável,
as normas brancas.
o poema deve falar à alma e aos sentidos.
nós somos deuses:
deuses não destroem.
o mistério da imensidade não me ofusca,
talvez o mundo nem saiba,
e é isto o que me espanta e me exulta --
a fonte que há dentro de mim.
nós somos deuses, mas ainda não
fizemos a descoberta.
diferente de todos semelhante a todos
sou mais poderoso
todas as coisas me servem eu sou as coisas
a dor não me espanta eu sou a dor.
o homem só é grande quando constrói.


não fiz mais poema para as estéreis estrelas.
desde a última vez que te vi em vaivém com a vida
não sabias da essência forte
que habitava o teu corpo nessas noites
naquelas noites em que te fiz tão minha
que era difícil conjugar quem eu era quem tu eras
já não éramos.


teu sorriso já não encherá as salas.
a palavra resiste a alturas ainda maiores.
mas que eram os ais mulher por quem te calas,
tu sabes que eram sinfonias de amores.
ah sagrada mulher, dorme em meu peito,
talvez o mundo te desperte amanhã.
o que é a vida sem o aroma do teu leito,
sem os hinos de afagos que me entoas no afã?


cantarei simplesmente o momento esgotado
como tributo.
neste mundo jamais conceberemos as formas puras.
são as impurezas que fazem as formas belas,
e as formas são sempre figuras
real ilusão
talvez não haja a negação da negação.
não é a dignidade moral que nos faz deuses,
é o ato de criar, nos lambusar nas formas.
o mundo é maravilhoso, a vida, a criação,
tudo é uma grande massa de modelar
na aparente harmonia que rege cada coisa.
a areia da praia é a parede celular,
o zumbidoecatombe é um sussurrotrovão
e todos são irmãos
nas divisas entrevalux intervalus.
fico pensando na alma das formigas,
nas mais diversas formas do criador.
deus é um grande artista plástico,
poeta músico seresteiro de noites não pensadas.


não farei mais versos às estrelas.
elas têm o seu vate.
cantarei as nossas formas
e mais a mais
existem gritos grifando a multidão,
é preciso perseguir as coisas e alcansá-las
mudá-las moldá-las mandálas acabálas.
nenhum halo se acendera em tua cabeça.
repito que a aparente sensação de vislumbre
é só visão.
através do atrazo destes anos atrozes
são como cem deuses sem ritos sem infinitos
sem eleuses
abaixo todos os mitos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Rebecca at the Well

 

 

 

 

 

Mário Hélio


 

II (Farol)


antes hera um pedaço de sombra num traço de sol
que se movia nas estepes silhueta de tal curupira
que o tempo esqueceu
escutava cantigas solenes poemas do céu
um golpe de risalegria tem pena de mim.


que tudo era um retrato de sombras não ousei dizer
que o meu amor era maior do que deus não ousei dizer.
e o vento bate bátega calçada
lá fora ainda haja passarada saiba cantar.
erantes o mormaço do que eu via um fragmento dar
uma flor menor do que a flor da flor no pomar
curupiraraponga risonho cão
coisas que o tempo ignorou e o esquecimento esqueceu
lição da morte que morreu imprevisto histórias de mefisto
em versiprosa
pausa
pousa num galho
retalho darvoredo devastado
resta esta réstia e a dor


herantes umolhar sobracidade porcimademim
tenta se libertar liberdade fugir como se ocultasse
o culto no obsclaro
como se a visão visse a si mesma
e as janelas namorassem outras janelas
mas o elemento não ousa em seu turbilhão de coisas.
meu amor é maior do que o amor habanera
se achará impossível o possível visivelin
coleção de rastros o infinito é maior que o infinito
o perdão se compadece do perdão mas não se perdoa
ouvirá o som o sumo o sim
o belo mais belo que a beleza
correnteza aventureza
o bem melhor do que o bem
narcisista a feiúra
não tem remédio pro seu tédio a cura
grande prisma
imagens fantasiosas liames figurações
a justiça é imparcial injustiça
certo erro berro trissura tristura
terá medo a coragem
o cansaço da mesa descansa.


neste ponto do espaço haves conversam
o irracional é racional no espaço deste ponto
a relação é relativa tudo é falso
o princípio em si mesmo é um fim
séculos de procura facha de treva na relvaga
alaquem uma forma amorfa


um acontecimento inesperado
está sendo aguardado por todos
as cadeiras do escritório têm sua própria dança
o neutro se anula o banal se fortalece
o mistério é mais misterioso do que o mistério
não existe mal mais maléfico do que o bem
ermotem toteminca antesera um pio sagrado
o passado passou para o passado
a gravidade repousa na antigravidade.
os cemitério são ermitérios e cassinos
os hinos sacros são canções profanas
deus é maior do que deus
neste pântano do espaço
contemplo o alcoice convento conventilho
a tarde rosna um diversion é igual a uma lousa
e tudo enfim é tudo a mesma coisa.

 

 

 

Bernini_The_Rape_of_Proserpina_detail

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Edna Menezes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Nurture of Bacchus

 

 

 

 

Mário Hélio


 

III (Quid novi)


a velhice das plantas
acostumadas a serem o que são
sem perguntarem o que são?
quid novi?
o ovni que sobrevvvvou rapidamente a mente
da cidade sumiu depois com o vazio?
quid novi?
o velho sempre argumentar-se que há de novo?
a velha olhada no espelho
depois estilhaçado e volvido ao que era antes
de ser?
quid novi? a morte aditiva? a vida minutiva?
quid novi? a velocidade? a passivilidade? as idades
todas?
e depois de tantotempo perdido em procurar ven-
cer o tempo constatar que não há tempo nunca houve
quid novi?
a morte?
morremos todo dia e não percebemos
eu não sei porque nos preocupamos
tu não existes insistes
ecoas coas asas ásperas do nada
entretanto sentimorste presente
irreconhecível irrepreensível.
não falas com ninguém, te ouvimos.
quem dera fôssemos eli-
eli-
minando tudo
e não restasse morte
pra manchar ávida a vida.
quid novi?
nada há,
e passa a existir
ao se negar.

 

 

 

Albrecht Dürer, Germany, Study of praying hands

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Vassia Silveira

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Theodore Chasseriau, França, 1853, The Tepidarium

 

 

 

 

 

Mário Hélio


 

IV (No túmulo de deus)


emissão palavra boca
neros nihil nação império
emissão palavra rouca
eu deus meu me abandonaste
templo dhelios me deixaste
emissão palavridéia
vênus déia felação
ação falsa palavra
logoritmo de palavra
emissão palavra louca

 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

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Elizabeth Marinheiro

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Delaroche, Hemiciclo da Escola de Belas Artes

 

 

 

 

 

Mário Hélio


 

V (Evangelho)


quantos poetas prováveis
inventam rimas prováveis
neste instante provável!
muitos disseram milhares de fórmulas,
mas quantos provaram
o simples sem teorias?
é isto escrever poesia?
tecer um camafeu absurdo, relativabsoluto?
morrer de medo no escuro,
escrever cartas de amor,
depois querer que a humanidade beba
esse cauim azedo?
quantos neste minuto improfíquo
gastam três minutos de alegria
num poema gasto
que depois de feito produz que efeito?
quantos tantos morrem de febre de pranto
e querem que a razão dos outros acate
esse momento tão pessoal.
quantos outros abarrotam as gavetas
de papéis manusados plenos de arabescos
a que chamam poesia.
felizmente são poucos os loucos
que cultivam esta arte mal dita poesia.

 

 

 

John William Waterhouse , 1849-1917 -The Lady of Shalott

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Helena Armond

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mário Hélio


 

VI (Niilismo)


a inutilidade da existência
a existência da inutilidade
viver sofrer gozar
ter bons e maus momentos
depois morrer e encontrar com deus
com deus encontrar depois morrer
que importância têm
viver sofrer gozar
ter bons e maus... enfim a perfeição
a mais vaga das paixões
a felicidade eterna que nos leva ao suicídio
nos faz joguetes dos deuses
deuses dos joguetes faz-nos
a religião confunde tudo
tudo confunde a religião
a inutilidade da assistência
a assistência da inutilidade
o homem como corre como morre
descobre a ciência que a ciência descobre
arquiteta universos, fica deus,
ah angústia suprema de ser tudo
de ser tudo angústia suprema
prana inútil
inutilidade da insistência
insistência da inutilidade.

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), João Batista

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Neide Archanjo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mário Hélio


 

VII (Mentes doentes)


essas inquietudes que escapam do meu ser
por tudo o que eu sou sem perceber.
o que eu fui foi alguma vez o hipotétrico,
o que senti sente o que me transformou.
tinhas razão, poeta,
sempre tristíssimas essas cantigas
sempre
gritando coisas que bem
não compreendemos.
tanta coisa!
e o que é real-
mente esse poema? uma parcela... um canto in-
completo...
verdadeiros lampejos... só lampejos...
sempre tristíssimos...
breve ilusão semiacon-
tecida que encanta e arrefece.
um som um sopro e tudo se transporta
pelo trauma que há por trás da porta;
depois a inquietação novamente
o cálice da indecisão...
como uma árvore no regato
esperando que chegue o outono
que as estações se transformem
levando os sonhos dispersos
e no silêncio ensinem
que é necessário matar as lembranças.

 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), Angels Rolling Away the Stone from the Sepulchre

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Andréa Santos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

 

 

 

 

Mário Hélio


 

VIII (Totmutações)


aceita o erebom prefere o erebom escolhe o mundumano
por mais turvo que seja
prefere a treva
deixem-me abandonem-me não me-ditem merdades
pu-
rezas e que-
rubins
eu prefrio a lama.
chega de felicidade poética
eu prefiro a cética
a herética a diabólica.
s coisas sagradas jamais foram ditas.
palavras divinas jamais proferidas.
eu sinto que o universo se limita
por ser infinito.
pudico é cada dia santo cada santa oferenda
cada riso contenda cada gesto feroz.
o sagrado é vulgar
ar e éter éter e ar
que se perdem na incompleta letal diabrura
alfomegamentescrita como uma crítica cítrica

 

 

 

Da Vinci, Madona Litta_detalhe.jpg

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Maria Helena Nery Garcez

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Victor Mikhailovich Vasnetsov, The Knight at the Crossroads

 

 

 

 

 

Mário Hélio


 

IX (Impulso)


o algo hediondo que as mulheres abominavam
era a pureza
oculta e incolor.


tudo cede um certo impulso ao nada,
todas as palavrasestãosoltas
por isso seguindo um autoimpulso peço-te
que não anoiteças mais
-- a última vez não me senti feliz
em ver-te estrelada e enluarada
te negavas o fio da razão.
o chão que pisas talvez um dia sejardim.
tu não choras choves, teus olhos são sóis enfurnados,
tua bocaverna úmida, teu sexo cratera mágica.
sigo a um certo impulso de amar-te,
não te amo por amor sigo a um impulso,
se te amodeio a medo e por mais que fantasies
este ódioamor contínuo continuo dizendo
que trovejas trevas retrocedendo torrentes
constantes espaços que se movem
és uma miniatura do exterior que absorvo,
átomos seguindo determinadas pulsações,
sóis e não olhos, cratera arguta não sexo
e o resto em ti são espasmos convulsos
meros impulsos

 

 

 

Soares Feitosa, dez anos

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Fátima Irene Pinto

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal de Tributos, o lado profissional de Soares Feitosa

 

 

 

 

Mário Hélio


 

X (Arrife)


não vinhas tu
com pontes e cais,
logradouros e vilas,
bairros perdidos na metrópole ensimesmada
por estradas e viadutos como multidões em arcos
não vinhas tu
do continente vasto chorando pelos negrinhos
dos morros que morrem de fome
nas caladas calados que anseiam farfalhas
nas grandes vilas favelas abismadas
não vinhas tu severa de amores muda e negra
cidade dos portos e dos cais
oco rr eco rre... os meninos
correndo com os comparsas
com passos magros e velhos
em toda multidão semesplendores
é o teu destino acender velas
aos mistérios e crendices do teu povo inquieto
que plasma no rasto e nas arestas
no atol atlântico de aspecto altivo
é o teu dever projetar as novas luzes
proteger as velhas sombras
pedras ruas e alamedas
petrificando os ambíguos heróis.

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922),  A Classical Beauty

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Giselda Medeiros

 

 

11.05.2006