Marta Gonçalves
Palavras
A herdade é sombra ociosa do tempo, ostentando a memória da forma.
As gavetas estão abertas e o vento sopra na janela. Personagens
vivas nos retratos da lareira, no esqueleto da casa inacabada. A
alvenaria marca calendários e sonhos riscam as paredes. É
interminável esta casa com móveis cheirando a jacintos. São
intermináveis os poemas formando a alvenaria. Habitamos um quarto.
Nele, antepassados do meu corpo povoaram, um dia. Cuido da grama.
Cuido da iniciação da linguagem. Abro o pórtico à imaginação e na
recolha da fala formo a estrutura da herdade. Trabalho o texto. O
texto que vai descobrir o novo, partindo do velho. São porosas e
frias as pedras da casa, ao criar a presença do tédio, do cansaço.
Há muito preparo a alvenaria da morada. Arlequins espiam da vidraça.
Na revelação, escaravelhos velando o sono. Sinto dias de embarcação.
Toda a dívida não saldada está nas árvores da herdade, no caramujo
oco do poema.
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