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Marta Gonçalves


 

Palavras


A herdade é sombra ociosa do tempo, ostentando a memória da forma. As gavetas estão abertas e o vento sopra na janela. Personagens vivas nos retratos da lareira, no esqueleto da casa inacabada. A alvenaria marca calendários e sonhos riscam as paredes. É interminável esta casa com móveis cheirando a jacintos. São intermináveis os poemas formando a alvenaria. Habitamos um quarto. Nele, antepassados do meu corpo povoaram, um dia. Cuido da grama. Cuido da iniciação da linguagem. Abro o pórtico à imaginação e na recolha da fala formo a estrutura da herdade. Trabalho o texto. O texto que vai descobrir o novo, partindo do velho. São porosas e frias as pedras da casa, ao criar a presença do tédio, do cansaço. Há muito preparo a alvenaria da morada. Arlequins espiam da vidraça. Na revelação, escaravelhos velando o sono. Sinto dias de embarcação. Toda a dívida não saldada está nas árvores da herdade, no caramujo oco do poema.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Three Ages

Marta Gonçalves


 

O casaco de Murilo Mendes


São dez horas e este relógio eterno,
vindo de meus avós, bate o mofo do tempo.
O cristal enfeita a mesa e quadros vestem
de linho as paredes. São dez horas de continuidade
de vida. Respiro a alfazema das magnólias. É julho.


Nada importa se dormes em porto distante.
Quero revelar a rotação da alma. Esta alma
aguarda o perfume, a visitação azul da poesia.


Será o relógio que desfaz o silêncio na noite?
Um vulto longo, com brancura nas mãos, veste um casaco
europeu. Me olha como um rebanho de carneiros.


As camélias estão amarelas. Foram meus dedos.
A libertação está na palavra. Elas apartam
a forma que fui. Liberto as tâmaras do tempo.


O vulto me olha e põe poesia solferina em meus dedos.
A sala fica iluminada. O vulto de casaco europeu coloca
o Cometa de Halley em cima da cristaleira. Sorri:


- Escuta, no fim da tarde, o piano de Mariinha.
A poesia chega no vento.
                  Ela é como o Cometa de Halley.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Picador

 

Marta Gonçalves


 

Retrato do poeta


Companheiro do vento, rosto de sal.
Ontem existia energia nos olhos.
O pórtico do tempo aberto ao silêncio
       da alma.
Nossos fracassos nossos fracassos
desenhados na imaginação.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

Marta Gonçalves


 

Papoula vermelha


Há muito meu canto corta laços
das mulheres vestidas de negro.
Querem a morte da palavra. Tenho dedos
que sonham e guardam o vento na janela.


Há muito olho a árvore e beijo seu ovário.
O pássaro aninha no galho. Desce o canto na varanda.
Cresce o olho amarelo das mulheres vestidas de negro.
Benzo minha alma e arranco a seiva das montanhas.
No vale cavalos lilases trazem o perfume do verão.
O cheiro do corpo é alfazema umedecendo lábios.


Há muito as mulheres de negro me espiam.
         Tenho nas mãos uma papoula vermelha e dentro dela
                            o sol.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Antonia Zarate, detalhe

Marta Gonçalves


 

Poema da Alemanha


Os mortos dos campos da Alemanha crescem
lírios em suas sepulturas de raízes.


OS mortos dos campos da Alemanha escreveram
a história dos homens taciturnos.


Os mortos dos campos da Alemanha enferrujam
a alma aflita de quatro gerações.


Nas madrugadas de chuva os mortos dos campos
da Alemanha lustram as botas dos velhos soldados.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Cole (1801-1848), The Voyage of Life: Youth

Marta Gonçalves


 

O canário da menina


Menina na calçada olhava os passarinhos
Seu Lolô, de gravata borboleta, descia a rua:
Vou trazer um canário pra menina.


Na avenida, o bonde passava, a enxurrada passava.
Tempo de manga, tempo de goiaba, tempo de papagaios.
Menina na calçada, seu Lolô descendo a rua.


No amor, a menina bateu asas.
Voou nos rostos. Beijou faces.
Sonhou com o mar. Descobriu o infinito vôo
da gaivota.


Tanto passarinho tantos vôos tanta saudade.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

Marta Gonçalves


 

Itinerário


O anjo de gesso conhece minha alma.
Está marcando o lado esquerdo do peito.


O anjo de gesso assombra as asas e chove no rosto.
O anjo sabe das nuvens.


Folhas amarelas e o vento cobrem o gesso do anjo
no jardim do tempo.


No domingo, o anjo se esfacelou na margem do rio.


Fiquei olhando as andorinhas. Lavei o rosto no chafariz.
Já se fazem luas. Coberta de cera, preparo a terra.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Triumph of Neptune

 

Marta Gonçalves


 

Morreram as videiras na quinta


I

Jogávamos vôlei na beira da tarde
o cabelo era louro o dolmã verde.
Amava o verde da veste. Havia cheiro
de maçã. Havia amor pelo moço de dolmã.


II

Os pássaros em muitas tardes se foram.
Vieram anos de silêncio. Celas de solidão
e medo. Março secou o mar a areia cobriu
palavras. A giesta formou sangue no fim da noite.


III

As árvores verdes marcaram o tempo
marcaram o cansaço o temor da morte.


IV

A música chegava quebrada nas montanhas.
A poesia era o uivo do lobo no amanhecer.


V

Chegaste trazendo o sol nos olhos.
Lembrei o moço de dolmã. Lembrei
o verde crucificado. Lembrei os corpos
enterrados em valas profundas.


VI

Viste com o beijo nos lábios. Nas mãos
o afeto. Havia água cobrindo a febre.
Habitava o verde-oliva nas manhãs.
Verde pântano no porto da alma.


VII

Quando vi a patente em seu casaco,
quando vi o sangue dos meus irmãos
nos porões, morreram as videiras na quinta.
Parti
      não entendeste minha ida.
Eras bom e o céu escuro
      vestia verde vestia verde.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Acis and Galatea

 

Marta Gonçalves


 

Aclive da Encubadeira


À Laene Teixeira Mucci
Ao seu livro Aldelin, feito
no computador (Encubadeira)



A emanação das águas nos arrozais
onde pássaros cansados buscam
a semente. O aclive da linguagem
no oxigênio do tempo guarda tâmaras
de verdes Natais. A colagem dos sóis
traz o mercúrio da virada do século.
São teclas mágicas, duendes da alma.
Vento brando acordando moléculas na tarde.


Será o aclive memória das folhas ou memória
das gaivotas em mares antigos. O poeta aprisiona
anéis na encubadeira e escolhe os dedos. Sopra
o giz das palavras. Aldelin, terra sem dono.


Aldelin, território que Marco Polo não viu.


Ar, água, fogo, no solo bruto da terra.
Ternuras vindas do cerne de outras peles.
Cheiro de figo do pomar do avô.
Arco de cobre em Aldebarã.


Aldelin, aclive na encubadeira.
Ilha do corpo ou mariposa voejando.
Filtro do cosmo em noite de jejum
Onde os insetos banham os olhos.


Aldelin, a palavra morre. Meu canto
é o nada diante de seus símbolos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Delaroche, Hemiciclo da Escola de Belas Artes

 

Marta Gonçalves


 

O vento nas folhas


Converso com o tamarindo e escuto
o vento nas folhas.
A palavra cobre a terra, cobre
as mãos inquietas. A idade é remota.
Longe ficaram as sementes.


A idade cega os olhos e invade a morte.
Não tenho o sono do limbo. O muro nasce
a erva no pôr-do-sol. A árvore vem do tempo
das águas e traz a maresia dos cardumes.


O silêncio das nascentes guarda a lonjura
da canção. O mesmo silêncio no verde pinheiro.
O verso perdeu o sol. Quero falar da criança
da rosa do último adeus da velha casa.
Sombras habitam o âmago do texto.


Converso com o tamarindo a história da alma.
A alma se esqueceu das estrelas. O medo
das confissões e o desespero da fala abrigam
um século de vida nos dedos nodosos de sonhos.

 

 

 

 

 

 

 

21.07.2005