Habitação

 

 

Nem saberia dizer onde moro exatamente.
Desconfio que habito dentro de meus dentes.

Doutras vezes, a penugem dos canários,
e era ali, naquelas sedas, penugem e cor,
que eu me mudava para minhas mãos,
senão os gatos, o dorso, viajava neles.

E se um pássaro súbito:
não pelo avisto, pelo ouvido porém;
(o som é que é súbito) — e outra vez me mudava,
era só ouvidos.

Para os meus olhos,
eles se esbarraram – sobre todos os horizontes –
em cima da beleza:
clamassem os dentes,
clamassem as mãos, clamassem as oiças,
a pele também clamasse — qual nada! —
haveria de engolfá-la só com os olhos —
anos a fio moro neles.

Um dia morei sobre o peito de minhas mães,
branca e preta, as mães,
(todas verdadeiras)
na mesma medida, agora, assim,
minha banda-fêmea
te regaça:
        desta vez
        “mulher”,
        sou tua “mãe”.

Pousa, amor,
te esbalda na cavilha deste peito-pulso
que pulso de pulsar te estremece:
teus dentes, tua-inteira, toda-tua,
tua cara, teus cabelos, tua pele — tudo — e alma;
deixa-te cair neste infinito-agora.

Terminei de sair dos meus dentes, dos meus olhos,
das minhas oiças também saí;

habito agora apenas esta minha mão;
sou apenas esta mão:

nenhuma diferença entre todas as coisas,
um dia quis pegá-las, mordê-las; mão,
o calor de tuas sedas.

E se dormires
recobrirei respeitosamente a tua nudez,

que é só tua —

pausadamente, pousa
o hálito
na cavilha deste peito largo:

      dorme, amor,
      sossega,

      da
      tua
      nudez — sossega —

            que da aurora,
            vigilante
            eu tomo conta.

 

Fortaleza, noite alta, 8.2.1999

 

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Este, o 9º capítulo de Poética, um livro vivo, aberto, gratuito, participado e participativo, cheio de comentários que, a rigor — esta, a proposta —, os comentários, mais importantes que o texto comentado: abrir o debate, uma multivisão.

— Livro vivo, como assim?

— Porque em permanente movimento, espaço aberto a quem chegar, tão amplo como o espaço àqueles que aqui estão desde os séculos, todos em absoluta ordem alfabética. Seja bem-vindo!

POÉTICA: Capa, prefácio e índice poemas e poetas comentaristas

 

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Comentários:

ADRIANA PATRICIA DE SOUZA: Mestre Feitosa, poema imenso de lindo. Ainda não consegui parar de ler. Passei toda a noite assim com os beiços tremendo e o coração palpitando. Antônio

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ANTÔNIO MASSA: Mestre Feitosa, poema imenso de lindo. Ainda não consegui parar de ler. Passei toda a noite assim com os beiços tremendo e o coração palpitando.
Antônio

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BÁRBARA JÔ: Estava passando pelo JP e fui ler “Habitação”. Pensei já tê-lo lido, mas não sei porque me pareceu tão novo... Tão profundo como os mares nunca dantes (com o perdão do lugar comum – confuso?). Bem, fui lendo-lendo e de ir-indo tanto fui gostando.
Identifiquei-me em cada linha, cada palavra e inda mais nos olhos que anos a fio também moro neles. E não precisam reformas! E cheguei ao trecho (por que cargas d'água todos teus poemas dizem coisas????). O trecho:

“desta vez
'mulher',
sou tua 'mãe'.
Pousa, amor,
te esbalda na cavilha deste peito-pulso
que pulso de pulsar te estremece:
teus dentes, tua-inteira, toda-tua,
tua cara, teus cabelos, tua pele – tudo – e alma;
deixa-te cair neste infinito-agora.”

Fiquei zonza. Que tens de bruxo?

“E se dormires
recobrirei respeitosamente a tua nudez,
que é só tua –
pausadamente, pousa
o hálito
na cavilha deste peito largo:
dorme, amor,
sossega,
da
tua
nudez – sossega –
que da aurora,
vigilante
eu tomo conta.”

Sinto falta do tempo futuro – do dia que virá, do Menino, de Ésquilo – será que ainda virá? Preciso sossegar minha nudez, preciso entregar minha alma, SF, sem medo, nas mãos que a saberão vigiar. Sei que sinto saudades de mim. Babi

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CARMEN BELTRÃO: SF, desconfio que sabes bem onde moras, dentro de teus dentes, nos canários, regaço-mãe, cavilha funda, ou mãos profundas que averiguam a noite que deita sobre o teu amor inerme (nem tanto porque vigias o portal de seus sonhos). Bem, como eu ia dizendo, desconfio que sabes que habitas em todo e nenhum lugar, a não ser nesse cometa-pensamento que te rasga o céu flamejante da poesia.... Que, curioso, vem através de tuas mãos, aconchego carinhoso que transborda o teu amor, trazida no dorso dos teus pássaros-viagens, forjada no teu peito infante e homem sob o adubo generoso do regaço materno que um dia incorporaste. É, meu amigo, desconfio que desconfias que de par com a poesia, voa, irremediável, tua alma... Melhor para todos nós, que, de lambuja, sorvemos o encanto que te liberta.

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CESAR VALE: Poeta: minha pequenez dentro desta habitação me faz ainda mais pequeno do quanto menor eu já sou. Quisera penetrar nos segredos da poesia, espantosa e enigmática como esta "Habitação". De que forma eu comentaria? Nem ouso! Nem arrisco! Quem aponta a melhor entre uma centena de apreciações? O poeta ou o crítico literário?

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DANIELA MAIUMI USHIZIMA: Feitosa, muito melodiosa, cheia de ternura e calmaria. Como se contasse a história de um mundo onde tudo se transforma, sem contemplação da perda, mas o deslumbre da eterna mutação, algo tão inerente ao nosso universo... Embora não olhemos sempre por esse prisma. Daniela

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ELOÍ ELISABET BOCHECO: “Habitação”, de Soares Feitosa. Esse poema é puro espanto. O que verte de água desse seu texto! Quem vem beber, volta; ou de saudade da água fresquinha, ou de ânsia de decifração. Eloí

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ERNANI GETIRANA: E depois dizem que as palavras são para ser... ditas. Pode ser. Mas, certamente, para ser ditas do modo que a vida é feita e parida. EMPATIA PURA. É o que esse poema provoca na gente. A capacidade que SF tem de burilar as palavras sem arranhar-lhes as entranhas, mas, ao contrário, preservando a docilidade de cada uma delas, com seu travo próprio, sua maciez específica, sua casa-ideia metafórica, isso é o que é. Elas, as palavras, essas bichinhas arrebanhadas por SF, nesse jeito todo seu de nordestinizá-las, alinhavando-as com benzeduras, coisas do agrado do polígono (secamente e ainda belo) lugar-alfabético onde o poema de SF ganha voo usando as correntes ascendentes da sensibilidade. HABITAÇÃO: Homem-tatu, caracol, metalinguagem esgueirando-se por entre as frestas da poesia, ela também, casa dos deuses e, na verdade, casa de qualquer homem que ousa debruçar-se sobre si mesmo nessa casa-planeta que habitamos todos nós, filhos da palavra, habitação da esperança. Ernâni

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GILDEMAR PONTES: Poeta, li nesse poema uma escavação a picareta de uma caixa preta nos confins do cérebro. Os destroços foram recolhidos e montados carinhosamente com a inocência da palavra poética. Estou em dúvida se pego a picareta ou me torne um juntador de destroços para desmontar ou montar esse mundo desconecido da poesia. Há-braços!

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GLAUCIA LEMOS: Habitação tem, no seu delicado lirismo, um sabor doirado de uma coisa que há muito tempo não me tenho concedido colher da vida. Ou não tenho sabido colhê-lo, se o encontro. O gosto de quem conheceu as muitas moradas dos sentidos ao longo das pequenas/grandes alegrias prazerosas; do suave ao tato, do enternecedor à audição, do deslumbrante à visão, até o achado definitivo daquele pouso-alumbramento-por-inteiro, aquele único que só quando se merece a graça de alcançá-lo, se reconhece.

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IOSITO AGUIAR: Aquele que esperamos – ou que nos espera – sem que mera premonição nos adiante onde , em que morada, em que sítio, em que local, em que olhar, em que corpo, em que alma, o encontraremos. Repousa na cavilha do meu peito. Na doação desse peito, na entrega desse eu-tua, define-se a habitação que em oferecer repouso está a recebê-lo e em se fazer doação, aprofunda sua âncora. Ouço sempre uma canção da MPB, não sei o autor, na qual, sem rodeios, com a simplicidade sábia dos simples, se repete o que todos sentem, mas poucos disso se apercebem: não se pode ser feliz se não for por poeta gerou. E daí? O cumpade Roseno tem razão quando diz ter sido muito bom, o poeta ter-se voltado para os versos depois dos 50. O intelectualismo – esse estrupício do “Scholar” – felizmente não teve tempo, nem chance de contaminar a cacimba de 5ª dimensão onde bebe o poeta. Assim, no caldeirão daquela cacimba, vemo-lo misturar elementos variadíssimos, que resultam numa poesia desconcertante para a pessoa comum. Como definir aquela poesia? Antônio Massa tocou o cerne da coisa quando falou de Salomão. É isso. O infinito não existe na nossa realidade porque ao homem (comum) não foi concedido tempo suficiente para contar a eternidade. Mas, aos poetas, aos iluminados e aos JIVAS (homem perfeito após a evolução pelas sete rondas de vida), com acesso à 5ª dimensão foram permitidos compreensão e domínio do infinito. Então, se se é poeta não é preciso ficar em silêncio ante o calidoscópio de emoções que o poema HABITAÇÃO desperta. Ocorre-me revelar um tete-a-tete que tive com as musas Erato (da poesia lírica) e Calíope (da poesia heroóica). Elas me contaram que da união entre Urano e Gaia nasceram os titãs e as titanides, seres divinos e portadores de forças elementais. E que de todos os titãs, o mais importante para o desenvolvimento do mundo foi Cronos, o mais jovem de todos, o senhor do tempo e que engendrou os Olimpianos que, como você deve saber, são os deuses, os poetas e os Jivas. Por desentendimentos que só a divindade explica, Cronos matou seu pai, Urano, encarcerou os irmãos todos nas trevas infernais mas deu prosseguimento às obras paternas. Gaia se indispôs com ele e predisse sua morte por um de seus filhos. O maluco, então, passou a comer a própria prole. Réa, sua mulher, e que estava de novo grávida, procurou a sogra e pediu proteção para salvar o filho que estava por nascer. Gaia escondeu-a na ilha de Creta onde teve Zeus, que cresceu sob a proteção da mãe e da avó. Zeus destronou Cronos, obrigando-o a devolver todos os seus irmãos que ele havia devorado. Como todo deus, Zeus cometeu atos imprudentes e impulsivos. Era um insaciável. Casou-se muitas vezes, inclusive com sua irmã Demeter, que lhe deu uma filha de nome Perséfone e que possui a lenda mais bela e comovente de todo o panteão helênico.
Eu queria mesmo era falar um pouquinho de Diônisos, outro filho de Zeus com Semele e tão querido do véio Gerardo. Ele personifica os potenciais da videira e do vinho. Sua mãe, Semele, foi a grande amada de Zeus e, por isso mesmo, vítima da perseguição e fofocas das irmãs. É... lá entre os deuses também havia disso. Por causa dessa fofocagem, Zeus teve de aparecer em todo seu esplendor para Semele. Ela não aguentou o impacto e morreu, estando grávida de Diônisos. Para salvar a criança que ainda não havia nascido, Zeus a tomou e costurou na própria coxa até que se desenvolvesse e pudesse nascer. Diônisos nasceu e foi criado escondido, embora sempre perseguido por sua tia Hera, que o enlouqueceu quando adulto. O coitado girou, girou e foi bater com os costados na Frígia onde foi acolhido por Cibele (a mãe dos deuses) que o curou e purificou, para que ele pudesse viver sua glória divina. Diônisos andava sempre com o “Kantharos” na mão e esse era o seu emblema. Era um mulherengo arretado e até dizem que é pela ligação com Diônisos que os poetas tanto apreciam um copo, música de corda e sopro e, sobretudo, um rabo de saia. O segredo dos dentes que rasgam e esmagam para alimentar-nos, a maciez da penugem dos pássaros, a perfeição da curva do dorso do gato; a capacidade de ver e escutar e, fundamentalmente, de saber. Saber!!! É isso, meu coroné! Ponto, oras... Iosito

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IURI DANTAS: Meu caro SF: Antes de deitar a mão com os comentários a respeito de “Habitação”, pergunto-lhe algo que aflige a toda minha geração de recém-formados e ainda estudantes em Comunicação: Será mesmo o diploma uma tortura necessária? Você que sentiu toda a comunicação brotar do cotidiano ao invés dos livros de Umberto Eco deve ter a resposta. Aguardo por aqui. Quanto à poesia, bem, todo poeta precisa de um conflito. O de querer se encontrar, tanto no macro deste universo que habitamos, quanto no micro de toda a carne que envolve este espírito inquieto, me parece ser a batalha travada em “Habitação”. Decerto que o verso precisa cantar por si só. E consigo ver isso. Cada frase desperta de nossa inconsciência. Cada palavra é recortada de um corolário de dúvidas que “habita” o questionamento que lhe é intrínseco. Interrompo a rotina de meu dia para apreciar esta joia. Muito há o que se discutir e tentar descobrir nas entrelinhas de que se utiliza. O questionamento de saber até que ponto uma palavra é ou não metafórica me persegue durante toda a leitura do poema. A cada verso o debate entre a lógica e a poesia em essência permanece e se aprofunda à medida que o tempo corre e os olhos param em algum vocábulo específico.
Dentes
Mãos
Grande parte de minha influência vem de Mário Quintana, o velho bagual de Alegrete, e todo o surrealismo de encontrar moedinhas perdidas e descobrir a poesia em trechos de notícia ainda me acompanha. Mas o seu escrever me aparece como uma busca inconsciente pela insatisfação e a dúvida. Não será neste espaço e nem mesmo na conjuntura “tempo” em que me encontro agora que conseguirei explicar a profundidade de tal grafia em minha alma. Uma pausa profícua. Preciso refletir e deixar meus pensamentos ao sabor da brisa de novas considerações. Permanecerei em contato, mas volto a esse assunto daqui a algum tempo. Por ora interrompo. Um grande abraço e um brinde às histórias que ainda não foram escritas.

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JOCA DA COSTA: A “Habitação”, de Soares Feitosa. “Palavra é coisa ou pensamento? E a coisa existe quando não está nominada, configurada nos limites da palavra que lhe enuncia a existência? “O poema ‘Habitação’, do poeta Soares Feitosa, propõe um antagonismo como solução a este antigo dilema filosófico da identidade entre Ideéia e Empiria. Ao afirmar que o Eu habita a própria mão e em seguida convidar à habitação da emoção posta na ‘cavilha do peito’ de um Outro, Soares Feitosa situa a tensão entre o Eu que se configura nos atos humanos e o Outro que se configura nos afetos, na alteridade, nas emoções. Tensão que funciona como fio de prata estendido entre o sensível e o desejado, a coisa e a vontade, o mundo e a sua representação. Como a aurora a que o final do poema remete, posta na vigilância do sono de um Outro, razão e emoção como compromisso ôntico entre o ser e o existir. “Mas Soares Feitosa ainda afirma outras habitações de si mesmo. Inicia o poema desconfiando que mora entre os seus dentes e desfia em seguida outras habitações possíveis ao fazer poético, lírica que abraça a onírica. Entre os dentes está a língua, esta pátria da existência que se constitui na tensão entre o Eu da empiria e os ‘Eus’ da cultura. “Pois que, como se fora deus, poeta cria mundos a partir da matéria sensível da palavra. “No poema ‘Habitação’, do Soares Feitosa, a palavra é coisas e a ideia é mundos. Assim mesmo, no plural. Afinal, e por vias tortas, ‘na casa do meu pai há muitas moradas’.”

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JOÃO DE DEUS SOUTO FILHO: O Habitar desta poesia, que é carne, que é sangue pulsante, ocupa todos os pontos cardeais, ultrapassa terceiras intenções, avança e se nutre das vísceras do poeta, que bota para fora a heureca de todos nós, viajantes, que teimamos em ir e vir por entre sonhos e parlendas. O Habitar desta poesia não pede licença, invade alma e mostra a cara do poeta, as linhas da sua mão que nele se transmutam, e volta a ele, e volta à mão, que se faz mãe sem medo, que afaga o seu rebento no seio materno, que canta o seu rebento como canário. O Habitar desta poesia é a mulher que se apresenta em cada um de nós, que nos habita, seja como a mãe de outras eras, seja como a virgem que se banha nas nossas lagoas (quantas lagoas temos em nós ?). O Habitar desta poesia merece a reverência do poeta. Um grande abraço.

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JOAQUIM ALVES: Soares Feitosa, Poeta, Habitação: Simplesmente fabuloso. No sentido de nos deixar extasiados, com olhos nos tijolos, na areia, na pedra. A primeira vez que o li, fiquei mudo. E, não sei porque, deu-me uma grande vontade de escrever. POEMAS, claro! Joaquim Alves, Lisboa.

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LAU SIQUEIRA: SF, O GUARDADOR DAS AURORAS. Lanço meu olhar canibal sobre sua “Habitação”, caro amigo, querendo suprir as ausências nutricionais da minha alma com versos hermanos de Femina e Salomão. Versos que habitam o espetáculo portentoso de medir cada palmo, palmilhar cada metro... rosnar e surpreender os próprios sentidos. Lembro Rilke, Pessoa... não, não! Lembro as Odisseias, as Ilíadas – novamente, como em Salomão. Qual nada... sinto-me mergulhar no desconhecido. Diante da vigilância da aurora, sinto-me ainda prosseguir em silêncio após o último verso. “Habitação” – esse poema dito entre os dentes começa e termina na expressão mais profunda do seu tear poético que, guardado por 50 anos, teve tempo suficiente de burilar-se para conduzir a obra e o artista da palavra que você é, no rumo do eterno. Isso é um segredo que só a poesia revela quando encontrada nas suas cavernas, em escaramuças intelectuais e sensitivas das mais distantes. E você encontrou-a, caro poeta! Desvendou mais uma vez o segredo, revelando a poesia em versos pincelados com avidez de pássaro e com a plasticidade de todos os descansos da retina. Cumprir sua “morada” é partilhar com as caravanas de anjos e duendes perfilados num horizonte que nos revela todos os orientes e ocidentes. Mas, ao mesmo tempo, se faz universal demais para ser medido, tocado, urdido... a beleza desse seu novo filho comove por sucção, ao que parece. Sou imediatamente absorvido. Feliz pelo gozo estético. E diante da beleza, meu caro Chico, apenas respiro fundo. Recebo (faço questão) todos os seus átomos e todas as alegorias que me permitem sonhar e cavalgar nessa égua chamada distância para torná-la, a cada instante o meu próprio habitat. Grande abraço do seu amigo Lau Siqueira

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LÍGIA NEVES: Soares, incrível!
Como comentas tão bem da mulher e protege-a de suas inseguranças, contudo desta vez surpreendeu-me ao descrever os animais com tanta imaginação e criatividade espontânea. Parabéns. A habitação conjuga-se no tempo de estarmos diante da mãe-mulher e conscientizarmos do que é necessário de um respeito formal. Abraço,Ligia

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LUIZ NOGUEIRA BARROS: Nunca ouvi dizer que poeta morasse em lugar nenhum, que são todos uns loucos-andarilhos. Conheci um, Christiano Fernandes, que improvisava a tenda numa sombra. E agora esse outro louco, o Soares Feitosa, vem com essa história de habitar. E depois com essa outra história de respeitar, e cobrir a nudez da amada, e tomar conta da vigilante aurora. Por amor inventam tudo. Até descobrem um lado feminino, contanto que agradem à amada. Uns ladinos conquistadores, esses poetas. Com plumas e curvas criam abismos, ninhos, para o amor. E agora esse outro poeta louco que tanto amo, o Soares Feitosa, resolvendo aninhar-se como se não fosse o maior dos andarilhos e amantes que conheço, e bom cabrito do Siarah. Luiz Nogueira

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MARIA ALICE VILA FABIÃO: Navegam os meus olhos – a reboque o coração, que sempre teima em deixar-se arrastar nestas viagens – através do desconhecido, do que se oculta para além dos dentes. A ferocidade!!! Como ir mais além na leitura, perante a ameaça de sermos destroçados no simples acesso ao mais recôndito da habitação do Ser? Venho de ausências – onde, em vão, busco a ausência definitiva. Por que não entrar, ultrapassar, então, autocida, essa barreira de agressividade defensiva?
A partir daqui, SF, devia eu própria erguer todas as minhas barreiras, regressar ao escaninho mais oculto de mim mesma e silenciar – proteger-me, contra a força do vórtice que me arrasta, rompendo-me, despedaçando-me, de aresta em aresta, paradoxalmente suaves, todas, terrível e dolorosamente suaves, todas!
Quão mais perigoso, e doloroso, no entanto, este mergulhar abrupto do outro-lado, na penugem dos canários, onde a metamorfose se processa, na viagem pelos sentidos, de Homem-dentes, Homem-Homem, em Mulher-Fêmea, Mulher-Mãe!!!
Dói mais, mas muito mais, ficar a saber, no ritmo acelerado dessa viagem – já lhe disse quão importante para mim é o ritmo, dimensão que envolve corpo e espírito, mas corpo também, ou sobretudo –, da existência, algures, por trás dos dentes-garras, da indecisa ambivalência da mão, da existência desse regaço materno e maternal. Como dói saber que ele existe!

“Um dia morei sobre o peito de minhas mães,
branca e preta, as mães,
(todas verdadeiras)
na mesma medida, agora, assim,
minha banda-fêmea
te regaça:
desta vez,
'mulher',
sou tua 'mãe'...”

SF, quero chegar ao fim, rápido – que me sinto arrastada pela torrente, ondulada e frenética, desta psique/habitação hermafrodita: “te esbalda na cavilha deste peito-pulso” – diz, homem. Que de mais masculino que um peito-pulso, cavilha de peito largo, símbolo, no homem, da força-protectora correspondente à suavidade-protectora de um regaço de mãe?

Habito agora apenas esta minha mão;
sou apenas esta mão:
....
mão, o calor de tuas sedas.
....
E se dormires
recobrirei respeitosamente a tua
nudez...
que da aurora,
vigilante
eu tomo conta.

Entre o mais puro erotismo e a pureza mais pura, é onde você habita, ondulante, no topo da vaga, na profundeza do sorvedouro, na quietura da água límpida, turbilhão andrógino que nos arrasta, indefesos para abismos ignorados.
É consigo ou comigo mesma que estou zangada? Deve ser comigo mesma, SF — porque sempre é comigo mesma que me zango, com esta incapacidade de resistir e dizer apenas: “Muito obrigada, SF, por ter escrito mais um poema em que há todas as coisas de que gosto...”, calando a minha fúria pelo turbilhão em que me lançou, arrancando-me à ausência voluntária; calando a minha fúria pela incapacidade de racionalizar o que sinto no seu poema, em palavras bem medidas, idas buscar a modernos e bem pensados compêndios de crítica literária.
Assim...? Que dizer?
É nas profundezas de mim mesma que o sinto, o seu poema. O reino da ausência de palavras. Após a minha tentativa frustrada de as procurar, algumas horas depois de ter iniciado a busca, vários telefonemas, duas visitas, um almoço, pelo meio, creio que só no abismo do inconsciente de ambos haveria possibilidade de comunicação.
Estenda o seu dedo: eu serei ET (lembra-se daquele simpático alienígena, vindo, como eu, de outra galáxia?), e também eu estenderei um dedo breve: um toque leve e as palavras serão inúteis.
Assumindo as maneiras de cá, diria apenas: e se pusesse uma vírgula a seguir a “pausadamente...”? Alargaria ainda mais a respiração desse pausadamente... [Alícia, pronto, botei a vírgula. SF]
Que, por agora, regresso, pausadamente, ao Nada, que “me deshabita”. Talvez uma viagem às origens: concerto no Instituto Cervantes: Guitarra espanhola – Turina, Torroba, ... Por que não me deixar cair num “infinito ontem”?
Um grande abraço – pelo “Habitação”!
Alicia

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MARIA AZENHA: Meu Querido Poeta!

Tudo aquilo que é divino
Não tem varinha de condão,
Pois ser Deus é ser menino
Sem latim no coração!

Adorei seu Poema.
Abraço, Maria Azenha

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MARIA DA CONCEIÇÃO CARNEIRO OLIVEIRA: Ave! Soares! Que maravilha de ritmos que imprimiste neste percurso que meus olhos não cansam de viajar.
Que horizontes ofereces a eles, que gratos, agradecem!
Beijos. Frô

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MARIA MAIA: Poesia do despedaçamento, feita sob a herança de Dioniso – o deus duplamente nascido – e da dualidade fundamental que tal deus promove: sátiro e bacante, masculino e feminino, beleza e fealdade, crueldade e leveza, regaço e perdição. Esta é uma tragédia dos tempos pré-pós-modernos. O ato amoroso é a habitação do humano. É dali que ele parte, sobrevive e se oferece em sacrifício para apaziguar os deuses, numa época em que milhares de humanos matam um deus a cada dia. O corpo despedaçado pelos dentes das bacantes em mãos, dorso, cabelo, peito, pulso e alma procura se restaurar no amor. “Sempre o mesmo acerca do mesmo”, advertia o grande Eudoro de Sousa, quando se tratava da tragédia. Gestada em tempos imemoriais para purificar o homem da hamartia (pecado original forjado no deicídio original – morte da divindade representada pela subida do homem do estado de natureza para o estado de cultura). E SF canta com sua pena-dentada a tragédia desta busca do desejo que não objeta em nenhum lugar. Que passeia pelos fragmentos do corpo da palavra com horror e amor. Que despreza a distinção masculino x feminino – porque sabe que no ato amoroso esta dualidade se desfaz. Os olhos se detêm na complementaridade deste horizonte que encandeia. “Pelo ouvido porém” se apresenta o canto e SF se faz sereia. O homem ainda tem pelo menos a possibilidade de se deixar atravessar pelo canto da sereia. Canto que o desvia da ferocidade do narcisismo e o conduz para o mar do amor. Mar onde o eu, este tirano, “como corpo morto, cai”. Mar onde o eu se desfaz no outro, reinaugurando eternamente a vida. Mar que se confunde com o sertão, onde habitam as deusas mães, generosas nutrizes, que, vigilantes, sempre tomam conta da aurora da criação.Maria

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MIGUEL SANCHES NETO: Prezado Soares Feitosa. Belo poema.
Os temas da habitação e do envolvimento erótico receberam um interessante contorno poético. E você escreve sem pagar aluguel aos que se julgam donos das habitações literárias. E isso é bonito, é necessário. Forte abraço do Miguel Sanches

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MIRNA GLEICH: SF, teu poema tem um movimento que mescla o suave com o sensual, num verdadeiro bailado de energia e doçura. Além do mais: que gostoso esse sentir maior! E poder/saber expressá-lo com tal serena melodia. Habitará no esconderijo de meus guardados especiais. Mirna Gleich

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PEDRO NUNES FILHO: Que é isso, poeta?!
A que alturas você quer chegar?!
Creio que não pretende chegar a lugar algum. Poetas nunca chegam. São seres entre-mundos. Difícil alguém ser capaz de dizer o que você disse nesse poema. As palavras são suas, mas são minhas também. São nossas porque dizem o que cada leitor gostaria de dizer e não consegue.

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RUTH DE PAULA: Vejo que o poeta se coloca no poema por inteiro (ou é o poema que se coloca por inteiro no poeta?). Todos os seus sentidos estão juntinhos ali, embora ele os coloque esquartejados; nem sei se “esquartejados” caberia para decifrar a profunda organização dos seus sentidos naquele momento. De fato, um momento de calmaria, tipo depois que os lobos têm a garantia da presa e ficam com ela entre os dentes sem se preocupar com as surpresas do tempo. Esses momentos nos dão um misto de fragilidade e força. No primeiro, nossos corpos são um não sei o quê que pode ter só olhos ou só bocas, ou até mesmo morar entre os próprios dentes!
Levitamos, é bem verdade e talvez seja essa a suposta fragilidade. Suposta, afirmo, posto que também nessas horas somos um amontoado só, nossos sentidos de tão unidos se confundem, o que é olho “sente” o gosto da pele do outro, enquanto que a boca pode silenciar e "ouve"; o ouvido, de ser tão sensorial, fala; e as mãos, de tanto sentirem, veem a alma sobre o corpo nu.
Transcendemos! Ruth

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RUY VASCONCELOS: SF, o dístico inicial de seu poema “habitação” (“nem sei dizer onde moro exatamente/ desconfio que habito dentro de meus dentes”) foi uma das imagens mais bem apanhadas que li nos últimos tempos. Uma beleza. Também pela sonoridade (como todos esses “ds” e “ts” aliterando-se). Agora, a concepção que rege todo o poema – o corpo como casa ou templo – é bem interessante. E pela esteriotipia que põem em cheque já a partir desse soberbo dístico. E quem somos nós para acharmos os limites precisos entre o que somos e o que deixamos de ser? Falo em limites precisos, mesmo. Fronteiras bem demarcadas. E desconfio que às vezes moramos fora de nossos dentes. Em comunhão com lua ou mulher. Afinal, o corpo é mais que uma mala, um jarro. ou algo que a gente pode rebocar daqui pra ali. Ou mesmo despachar na alfândega dos sonhos. Tão-só “morada do espírito”. Sorte de repositório, cisterna. Mas, claro, é nele onde inaugura o bom senso, a pureza dalma. E possui o olho, esse milagre. Essa janela mais porta (“o sol entra pela porta/ e o luar pela janela”), como diz certo refrãozinho de nossa terra – talvez trazido de trás-os-montes. parabéns pelo poema. Ruy

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SOUZA SANTOS: Caro Feitosa, porque era carnaval, e já estava cheio de V. Rao e das teorias evolutivas do jurisdice, abri o bichinho pra arejar um pouco o espaço pensante, “pimplou” e vi que tinha uma mensagem, fui lá, era vc me dizendo ser agora proprietário, latifundiário, locador e dono do BNH.
Moço, que poemaço!
Aposto que foi desses que saiu assim de rompante. Sentou, quando viu 'tava feito, que ninguém amadurece um texto desses assim no peito, se não papoca. Souza Santos

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STELA FONSECA: Feitosa, poeta amigo, meu amor (permita-me a ênfase). Depois de PSI a Penúltima que me deixou mais de uma semana em estado de êxtase, nadando, vivendo e gestando entre as palavras e o cheiro da imburana, eu não poderia supor que outro poema seu, ou de qualquer outro poeta, tocasse tão profundamente minha alma. Enganei-me, Você não é apenas poeta, é um mago, um iluminado, um enviado do reino das palavras do qual pouquíssimos descendem. Um reino tão especial e inacessível que nem os iluminados que o representam, sabem que ele existe. Penso que, por segundos, as palavras-luz do reino habitam o iluminado e se fazem em algo que transcende o poema. Fiquei cerca de duas horas ( e continuo) sorvendo cada palavra (rica em significados... que dom você tem amigo!) da sua HABITAÇÃO, cada som, cada mistério, cada símbolo, cada sensação. Deixei-me envolver pelo invisível e transcendente porque, meu poeta, a análise da sua Habitação como obra poética, a mais bela que já li, cabe a outros iluminados. A mim basta deixar-me encantar, deixar-me tomar inteira pela força, grandiosidade e beleza desse indizível encontro entre o Amor e o Amor, parido pelo homem que guarda auroras. Stela

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VANDA DONADIO: SF, impossível não habitar teu peito firmamento; um grande abraço estelar… Vanda Donádio

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VITO CESAR FONTANA: Soares, se bem nem conheço o todo de tudo que você escreveu, caro amigo, já esta tua HABITAÇÃO me bastaria para que eu soubesse quem tu és. Estou cheio de segundas pessoas para dizer direito aquilo que sei sobre o que nem sei, mas sinto. O poema-víscera habita mundi. Meandros de nós todos, apocalipse do uno, gênesis do si mesmo, reverbero de espelhos espalhados no tosco dos olhares, minimalização maximizada do encontro da palavra e da imagem num quadro de Dalí. Penso que ler esse poema não o é. É um poema de se ver, palpável, sentido no colo e acalentado... é um poema-ser, com suas caras, lágrimas, bocas, intestinos, rebinbocando na parafuseta do juízo mais do que perfeito. E tu sofres, poeta, na feitura, no arremate, no afino, no jorro... Um poema desses não foi pensado, foi expulso, vomitado de orgasmo pleno, daqueles que doem nos ovos. Vito

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