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Mario Cezar


 

Novena


suas mãos queriam
(apenas)
abraçar a liberdade
dos pássaros

antes que o sal
abrisse outra
fenda na alma.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

 

 

 

 

 

Mario Cezar


 

As cantigas do sol


quis o cântico
das marés noturnas,
o lume de qualquer
mineral cristalino,
os seios mornos
do primeiro amor,

quis a peixeira
do meu avô
para rasgar em
praça pública
a carniça do medo,
sob o olhar
do povo em festa.

 

 

 

Soares Feitosa, dez anos

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Paulo Petrola, 2002

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

Mario Cezar


 

Icó


em teus rios
bebi a seiva mais
selvagem dos jasmins.

Quanto ao
poema
se fez pássaro.

 

 

 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), girl

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Anchieta Pinheiro Pinto

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Picador

 

 

 

 

 

Mario Cezar


 

De mapas e alaridos


meus olhos queriam cutucar
os confins do mundo.
não tinha cabimento continuar
esfolando os pés no beco do urso.
Nos ricos sobrados da rua central
meu aboio era esfaqueado a olho
nu.

O sonho virava molambo na mão
dos opressores.
Queria partir. estraçalhar a
indigestão das lágrimas. Receber
o assopro de plantações distantes.
Na pequena Icó não cabia o
amanhecido perfume da cacimba,
o vôo da rolinha fogopagô, a
infância das hortelãs, o sereno
da noite.

No dia 15 de março do ano noventa
sai de casa com uma mala de pregos
retorcidos. Continha quatro calças
remendadas, um livro de Dostoievski
e uma banda rapadura preta pisada
com farinha caruçuda.

Duce e Dalva apareceram vestidas de
carmim, vistoso na beira do coração.
Quando o ônibus partiu, mastiguei
um longo vento amargo diante das
lágrimas de mãe que lentamente
se esfacelaram no cimento sujo da
rodoviária.

 

 

 

Henry J. Hudson, Neaera Reading a Letter From Catallus

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Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

 

 

 

 

 

Mario Cezar


 

Sangria


A noite vagueia
sobre a veia
aberta em dores.

E quando as flores se
perdem no verão
uma bruta sangria de
insônia
habita a amargura dos olhos.

Em cada recanto
escuro dos quintais
cruza histórias de
homens exilados.

Homens que espiam
a dor degolar as primeiras
madrugadas
e depois devoram a mais
profunda solidão do século.

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, David, detalhe

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Vicente Freitas

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Judgment of Solomon

 

 

 

 

 

Mario Cezar


 

Fome


teus olhos
são duas lamparinas
enriquecidas na
dinastia
dos açudes

teu sexo
também digo
cuia de precipício
ou
estrada de buquês inesgotáveis
redime
o meu humano alvoroço

tua pele
flora mais florida
carrega os mandamentos
da terra morena

teus lábios
talismãs acesos
tem as escrituras do vinho
e aqui
começa o reino do poema
sem cabresto

teus seios
pérolas
de mil sóis enfurecidos
alumiam as antigas
cantigas de ninar

teu nome
verbo soberano
porque é fogo solidário
lúcido
como o princípio da chuva.

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion

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Roberto Gobatto

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

Mario Cezar


 

Ressurreição dos oceanos


hoje peço o rumor
do teu corpo

de preferência antes
do nascimento da lua minguante.
Pode ser numa rede de renda
encarnada
esticada frente ao clarão da
noite amiga

depois
posso penetrar no oceano
para lavar a poeira do exílio.

 

 

 

Titian, Noli me tangere

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Adriana Zapparoli

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

Mario Cezar


 

Rua da Palha


lembro quando
o choro se tornou
vazante
dentro dos
teus ossos

e uma saliva
de sangue pisado
habitou os
labirintos da
carne.

 

 

 

Ticiano, Flora

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Natalício Barroso

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Triumph of Neptune

 

 

 

 

 

Mario Cezar


 

Rapadura consagrada


meus poemas
se articularam
na entressafra das chuvas

porque a palavra
precisa de maturidade
para alcançar o segredo
do vôo.

 

 

 

Ticiano, O amor sagrafo e o profano, detalhe

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Daniel Mazza

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Nurture of Bacchus

 

 

 

 

 

Mario Cezar


 

Primeiro incêndio


em janeiro o nascimento
da chuva
liberta a angústia
do camponês.
O vagido da fome vai
embora quando o pendão
do milho verde se reacende

A esperança se torna
húmus abençoado.
O sertão se torna
uma articulada pátria
de serenatas.

em janeiro
busco a oferenda
dos teus seios
(maçãs conservadas
na oitava sinfonia do fogo).

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Pipelighter

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Adail Sobral

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Rinaldo e Armida

 

 

 

 

 

Mario Cezar


 

Última migração dos beijos


nunca mais recebi
o lírico percurso
de tua guitarra
libertária.
Nem o bálsamo daquela
água quieta
colhida por ti
na beira do açude de Orós.

Será que o incêndio
dos teus beijos
se perderam nos
escombros da capital
cearense.

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Cleópatra ante César

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Paulo de Tarso Pardal