Aleilton Fonseca
Teoria particular (mas nem tanto) do poema
1
ovídio: escrever 200 versos
para, dentre, recolher 20 linhas
que contivessem a poesia
de todo o processo:
mas o caudal imenso
não se investe só dos vestidos
da forma nem se conforma
2
mas, há o tempo: é preciso,
por humana deficiência,
o instante grafado:
embora o fluxo da essência,
contínuo, jamais se desfaça
na mão: o poema acabado,
tal como lemos,
é somente convenção
3
pois
o que acaba de se compor,
já desmorona,
se desdiz, se rediz, mildiz,
novas palavras no invento,
novo inventário
em dez dobras vezes n
desdobra-se
no princípio
e agora e sempre
4
a ilíada são muitas ilíadas,
quão homeros a escrevê-la
e talvez por concluí-la ainda:
as estrofes que agora lemos
à falta da mão de homero
damos então por findas
5
mas no poema: cada verso,
é reverso do verso, diverso
no próximo segundo;
cada palavra cede
seu lugar, chama
a outra, que logo apaga,
outra chama, reacende sílabas,
rimas, sentidos,
rios incontidos
6
os lusíadas de camões,
o que lhe sobrou de naufrágios,
para sempre incompletos
daquilo que virou água,
ou que ficou disperso,
dos versos tornados mares,
onde camões? (oh, finitude!)
para prosseguir o que não deu tempo:
com engenho e virtude
e arte
7
o poema muda
de cor e de nome a cada piscar
de olhos,
se alonga, se encurta,
cada rima some
no som que emite
e transmite a centelha
à outra rima, parelha:
corrida de som infinda
poemando-se
8
baudelaire reescreveu as flores
até o fim de sua vida
e as flores ali contidas
não estão terminadas,
a não ser por convenção
e favor à comodidade:
baudelaire houvesse vivo,
as flores contínuas, mudadas
9
cada versão, tal rima a esmo,
reinscritos versos,
os ex-certos, nem mais
nem menos certos,
o mesmo intérmino texto,
em eterno palimpsesto
10
os calligrammes de apollinaire
necessitam de revisão:
pena que o poeta
não esteja aqui a fazê-la
e que assim seja
"para o bem da convenção"
11
pois o poeta e o poema,
entre si adotados, convivem
diários, instantâneos, côngruos,
mesmo se esquecidos um do outro
cada um é outro e o mesmo;
que a cada golpe de ar
novos sensos se acumulam
nos joelhos das palavras
12
quantas pe(r)sso(n)as e vozes
no baú de inéditos do pessoa
à espera de nome e signo
e profissão e biografia:
e não fosse a vã cirrose
quantas mensagens ele a refaria?
13
o poema é o fazer incompleto,
o refazer nunca pronto
14
pois o poema,
já no instante que pronto,
já recomeça,
em processo difuso,
inconcluso,
intransitivo, de re-flexões:
15
que não há o poema particípio,
mas sempre o poema gerúndio
em constante fervura:
é novo e outro, na leitura,
nos reciclos dos segundos
16
o poema que se lê
é tábua de aproximação
17
o poema publicado: trato caduco,
que junto ao poeta já está mudado:
mesmo que não o mude a letra,
mesmo que não o mude a rima,
que não mais o toque,
por respeito ao senhor editor,
por respeito ao senhor leitor,
ao senhor pesquisador
ao senhor louvor:
mesmo que o poeta
assine a convenção do texto
pronto (para o mercado?)
ou mesmo abandone o texto,
a pretexto de acabado,
o poema disporá da hora
de ser outra vez revelado
se outra voz o adota
18
e o poeta, com seu texto pronto,
se já se embebe de elogios eunucos
já saliva manifestações de apreço,
e a poesia paga o preço
19
o poema publicado:
mera marca provisória,
impresso para as provas
de que se faz a história:
é o rastro de um vôo veloz
que poesia é rio que recomeça na foz;
quando se digita o ponto
final, já é hora de apagá-lo
que a corrente segue em frente,
os seus elos sem intervalo
20
contudo, pobres humanos,
só sabemos existir
imprecisos
entre pausas: comer, beber
ir ao banheiro,
ganhar e gastar dinheiro,
dormir, sonhar, sorrir;
as causas para o viver
a pausa para morrer:
a poesia perde por esperar
21
somente em alguns momentos
somos o poeta, em vigília e fé:
em que a poesia, nosso invento,
nos inventa
e nos dá a concessão do poema,
mero quadro, em interrupção,
que ela é onda contínua em nós
mesmo se nos deixa sós
22
então, poetas,
que já me ensinam o sem início
nem fim:
o ponto final, abolido!
o ponto inicial, abolido!
o começo, simples acerto de pares,
o fim o sem-fim inumérico,
infinita água de mares,
o poema dito no instante
que a poesia o dita
23
pois a poesia, estado de ser,
não se captura no humano molde
de letras; ela resiste e insiste
diante dos olhos invisíveis
do poeta que se sabe seu
que a sabe sua,
e sabe: a poesia nua,
companheira e algoz,
toma-lhe o fôlego e a voz,
suspende suas noites,
retira-o da vida, e, num átimo,
se entrega por um instante
entremostra-se, falso-domada
em registro parcial
da luta jamais vã,
mal rompe a manhã
24
a poesia: o rosto na água;
o poema, sua inconstante
aparência, forma mutante,
em recorrência, minúsculas
mudanças em contínua
ação
25
poetas, retomem os seus poemas
despregando-os do papel impresso,
raspando-os da tinta áfona,
em renovada contradança
de metáforas em processo:
o poema, colado no branco da página,
clama por fluir e refluir
em novas sintaxes,
em novas vírgulas,
em novos sentidos;
desdobrar-se em leques vários,
entremostrar, desde as entrelinhas,
seus novos significandos
em poessência
26
que se o poema se esgota,
da poesia abandonado,
torna-se somente corpus,
de pesquisa e enunciados,
em autópsia textual
que lhe decreta o sentido,
em seu mais "último grau",
de seus versos dissecados
27
oh, amém, poema finado
28
mas não há a poesia finita,
mas corrente, em espiral, sem termo
o poema é o instante,
dessa corrente em passagem
re-fulminante,
diante dos olhos atônitos
do poeta, às vezes surpreso,
em agônico gesto
29
o poema re-preso no papel,
em tinta enformado,
sob tratos cosméticos, convencionados,
esconde sua verdade;
o poema é mais que o brilho de letras
para olhos desavisados,
e, como não há parto asséptico,
assim nasce, corpo de palavras,
entre suor e risos e gases e lágrimas
30
sempre o poema-sendo-ando-indo,
em gerundivo estando, em contínuo...
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