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José Inácio Vieira de Melo


 

AVE


Uma prece desponta na poeira:
neste defumador, bruma das almas,
nessa cruz da paixão. É sexta-feira –
falam no vinho em consoante flama.

Num cântico, tanger toda essa gente,
adentrar as cancelas dos currais,
e a prece, assimilada na tangente,
erguendo templos, constrói capitais.

O chocalho dos deuses chama a ave:
hora das trancas, bulício de chaves,
e o menino deseja o leite santo.

Reconhece-se nessa procissão
denso crivar da fome em profusão:
longa é a fila aos peitos dessa santa.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

José Inácio Vieira de Melo


 

Bênção

Para Aloísio Vieira de Melo

 


Meu pai,
beijo suas mãos,
não como um homem
pretende beijar as de Deus,
mas como uma árvore
beija suas raízes.


 

 

 

Aurora, William Bouguereau (French, 1825-1905)

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Micheliny Verunschk

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Exposition of Moses

 

 

 

 

 

José Inácio Vieira de Melo


 

BODAS DE SANGUE
Para Cristina Hoyos


Que beleza é essa que tanto me incomoda?
Que olhar de tâmara – sâmaras que se semeiam –
transborda dos cântaros de tua íris?
O que anunciam teus inquisidores e translúcidos olhos?

Tudo em ti é duplo, senhora do amor bruxo.
De tuas mãos multiplicam-se os gestos e as bênçãos
e com tuas mãos dizes mais que cem mil bocas juntas
e essas mesmas mãos prenunciam a beleza de tuas ancas.

Mas mais do que tudo, o que impera em ti
são esses milagres que são tuas tetas,
dois punhais que a cada instante furam minha paz
e que me ensinaram a amargar a verdadeira sede.

Ah Cristina Hoyos, deusa de Espanha,
vem bailando em nuvens e em versos de Garcia Lorca,
vem com teus punhais para a minha peixeira de 12 polegadas,
pois as nossas bodas só podem ser de sangue.


 

 

 

Rubens_Peter_Paul_Head_and_right_hand_of_a_woman

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Um cronômetro para piscinas

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Empire of Flora

 

 

 

 

 

José Inácio Vieira de Melo


 

CAVALEIRO DE FOGO

Sou de uma raça
Que procede do fogo.

Não podereis calar-me.

Carlos Nejar



Neste lusco-fusco aprilino
só enxergo o escarlate;
e digo “fogo” e me inauguro,
eu, filho do Sol.

Boneco de barro
regido pelo verbo incandescente,
me alimento com a força da água
e caminho nos braços do vento.

Fogueira encarnada,
dou testemunho dos meus dias:
cicatrizes no lombo,
na cara e pelos braços;

fogo no roçado,
trinta e cinco brasas incendiando,
torrando, apurando, purificando,
lavando o rubi do coração.

Eu, boneco de barro,
cozido nas labaredas do Sertão,
recebo o batismo da estrela rainha:
Ígneo – Ignácio – Inácio.

E um pássaro de prata,
prenhe de encantos e de signos,
vem me saudar com meu destino:
cavaleiro, corcel e dragão.


 

 

 

Herbert Draper (British, 1864-1920), A water baby

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Myriam Fraga

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Rinaldo e Armida

 

 

 

 

José Inácio Vieira de Melo


 

CIÇO CERQUEIRO


O meu é fazer cerca:
cavar buraco, aprumar mourão,
esticar arame com pé de cabra,
apregar grampo nas estacas.

Em troca peço pouco:
basta me dar leite azedo,
rapadura, farinha e uma hora
de sombra de pé de pau.

Precisa nada mais não!
Me dê coalhada todo dia
que eu cerco o mundo
pros bichos não se perderem.


 

 

 

Hélio Rola

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Ivan, 2003

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal de Filosofia

 

 

 

 

 

José Inácio Vieira de Melo


 


DO PENSAMENTO


O mistério me leva à estrada
e a estrada revela
a poeira que sou.

O espanto me conduz à reflexão
e a reflexão revela
a peneira que sou.


 

 

 

Valdir Rocha, Fui eu

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Paulo Bomfim

 

 

 

 

 

 

 

 

Biblioteca Cururu

 

 

 

 

 

José Inácio Vieira de Melo


 

Epitáfio para Guinevere

Cavalos já foram pombos
de asas de nuvem.

Domingos Carvalho da Silva


Meus cavalos choram por ti, égua de olhos azuis.
Não mais invadirei o vento montado no teu galope.

Que fique inscrito na tua lápide
o verso de lágrimas dos meus cavalos.

Para tu, que trazias os céus dentro dos olhos,
o relinchar da paixão pagã
dos cavalos que trago dentro de mim.

 

 

 

Leonardo da Vinci, Embrião

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Foed Castro Chamma

 

 

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

 

 

 

 

José Inácio Vieira de Melo


 

EXERCÍCIOS CRÍSTICOS


Eu sempre tive o desejo incontinenti de salvar o mundo,
sempre escolhi por companhia os que não medem o tempo
e andam para cima e para baixo a praticar cigarras,
os que têm por fortuna o dia todo – todos os dias.

Sempre cri ser o redentor de toda miséria humana,
então resolvi me coroar de espinhos
e por trono escolhi o cravejar da cruz,
tenho esse sorriso triste, essa lágrima de sangue.

Eu só acredito nas coisas que não vejo
e sinto em cada estrela uma Madalena a luzir,
e mesmo sabendo que Deus não existe
em cada criança percebo a Sua Face esplendorosa.

Trago comigo todos os pecados do mundo
e sou o cordeiro imolado que alimenta o delírio,
por isso a glória e a humilhação do vinho:
não é nada fácil ser juiz da própria loucura.


 

 

 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), girl

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Natércia Campos

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Colle,  The Return, 1837

 

 

 

 

 

José Inácio Vieira de Melo


 

GLÓRIA


Nem cerca de dez fios segura a cabra.
A cabra não aceita doma nem redoma,
ela sobe a pedra, vai para o alto,
ela quer sempre a montanha.

A cabra – canindé ou humana –
busca o pedestal, o pódio.


 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion

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José Peixoto Jr

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Morte de César, detalhe

 

 

 

 

José Inácio Vieira de Melo


 

LABIRINTO (O HOMEM DA ESTRADA)
Para Vinícius de Moraes


Não me ofereça o paraíso.
Andar para cima e para baixo é o que quero.
Esperar o dia parir o sol,
sentir a minha pele tostar nas plagas dos sertões.

Não me ofereça o infinito.
Quero o seixo da estrada.
Dar o passo e levantar poeira – me confundir na poeira.
Quero todas as formas e amanhã ser informe.

Sim, sei das topadas, dos calos, do estrume. Não me iludo.
Mas sempre estarei pronto para me levantar.
As cicatrizes contam histórias que gosto de escutar:
me reconheço nelas, e choro e canto e fico feliz
quando a lua estampa um sorriso na boca da noite:
ali sou eu quem sorri.

Olho para o céu e vejo um caminho de estrelas.
E além e além e muito além de todas as coisas,
sonho que sou o seixo, a estrela.
E assim sou uniforme.


 

 

 

Titian, Noli me tangere

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Caio Porfírio Carneiro

 

 

 

 

 

 

 

 

Winterhalter Franz Xavier, Alemanha, Florinda

 

 

 

 

José Inácio Vieira de Melo


 

LEITEIRO
Para Noel Vieira de Melo e Lourival Bezerra de Melo


Ser leiteiro é chamar certo
na mão firme, na munheca,
deixar a tina escumando
sem derramar nas beiradas.

Muitos ordenham as nuvens,
deleitam-se na abundância
da escuma branca, da nata,
e têm as mãos de pelica.

Outros apascentam rochas
e tiram leite das pedras,
trazendo nas mãos os calos
dos peitos brutos da brita.

Há, porém, os sem rebanho,
que por não terem palavra,
nuvem, nem pedra ou gado,
vivem para se ordenhar:

insulsa masturbação,
destempero verborrágico,
revelando desespero
invés de um êxtase orgástico.

Os verdadeiros leiteiros
escrevem as alvoradas
com a tintura sagrada
dos peitos da vacaria.


 

 

 

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Willis Santiago Guerra

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

José Inácio Vieira de Melo


 

PAZ


Eu,
que venho de tempestades,
anuncio a calmaria.

A violência
que existia em mim
rasguei na bala.


 

 

 

Bernini_Bacchanal_A_Faun_Teased_by_Children

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Aurelino Costa, Portugal

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

José Inácio Vieira de Melo


 

PEDRAS AMOLADAS, FACAS ATIRADAS
Para João Cabral de Melo Neto


Vai, poeta
pega a xara
e amola as tuas facas
e de uma só cutelada
desata a sangria

O olhar já é pétreo:
Vai, tira o couro da poesia
– não temas a carne trêmula –
e inerva os teus versos

Vai, poeta
com tuas facas
destrincha a carne
e nela passa o sal
e estende-a ao sol

Então não é dessa
carne seca que é feito
o teu ritmo?

Vai, magarefe
                   das palavras

Ah poeta
apesar de tuas lâminas
serem as mais afiadas
é a pedra do rim
                      que é
pois com tuas pedradas
descubro e descubro

Vai, poeta doido
                      de pedra.


 

 

 

Bernini, Apollo and Dafne, detail

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Cissa de Oliveira

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

José Inácio Vieira de Melo



Sentido


Os homens vinham e havia um caminho.
Continuavam, e o prumo os esperava,
e eles seguiam acreditando nisso:
sempre rumar — sempre sempre sempre.

Os homens nunca chegavam a algum lugar,
mas iam eternamente em busca de,
pois não queriam nem suportariam
entender a verdade do lugar nenhum.



 

 

 

Franz Xavier Winterhalter, retrato de Roza Potocka

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Vidula Sawant

 

 

 

 

 

 

 

 

Delaroche, Hemiciclo da Escola de Belas Artes

 

 

 

 

José Inácio Vieira de Melo


 

TOADA DA DESPEDIDA
Para Antonia Torreão Herrera


Certo, temos que ir.
E quando damos o passo
muito do que somos fica.
Muito mais seremos.

Inevitável a única certeza:
um dia a Derradeira vai lamber
a tua boca, e já estarás
habitando noutras plagas.

Não te aperreies, é assim mesmo:
a despedida é a véspera do encontro
(e o mundo – que nem peão –
continua no arrodeio, na ladainha).

Amanhã, quiçá, estaremos juntos
nos favos de mel das europas
ou no estrume das vacas leiteiras.
Vamos cumprir as quadras da vida!


 

 

 

Albrecht Dürer, Head of an apostle looking upward

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Bruno Miquelino

 

 

25/07/2005